Minhas opiniões e publicações, expostas neste espaço, são reflexões acadêmicas de um cidadão-eleitor, publicadas ao abrigo do direito constitucional da liberdade de expressão

"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

19 agosto, 2006

As vivências de cada um

Manoel Garcia Morente em seu livro “Fundamentos de Filosofia”, editora Mestre Jou, São Paulo, escreveu que “só se sabe o que é filosofia quando se é realmente filósofo. Isso quer dizer que a filosofia, mais do que qualquer outra disciplina necessita ser vivida, necessitamos ter dela uma ‘vivência’”.

Exemplifica o professor: “Uma pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo muito bem; observar, um por um, os diferentes nomes das ruas; estudar suas direções; depois estudar os monumentos que há em cada rua; pode estudar os planos desses monumentos; pode revistar as séries das fotografias do Museu do Louvre, uma por uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos, pode este homem procurar para si uma visão das perspectivas de Paris mediante uma série de fotografias tomadas de múltiplos pontos. Pode chegar, dessa maneira a ter uma idéia bastante clara, muito clara, claríssima, pormenorizadíssima, de Paris. Semelhante idéia poderá ir aperfeiçoando-se cada vez mais, à medida que os estudos desse homem forem cada vez mais minuciosos; mas sempre será uma simples idéia. Ao contrário, vinte minutos de passeio a pé por Paris são uma vivência”.

Valho-me das idéias de Morente para fazer uma primeira pergunta: O que é o cárcere? Poucos conhecem realmente do que se trata, poucos puderam ter a oportunidade de ir além das idéias formuladas, pelos relatos, fotografias, documentários e mesmo pelos preconceitos sociais, poucos puderam ter a vivência de sua realidade.

O cárcere para muitos é a cela do arrependimento, para outros a gaiola da reprovação, mas para todos que lá são postos é o local da expiação.

Sem dúvida que muitos que passam pelo cárcere são merecedores de seus afastamentos da sociedade, são irrecuperáveis delinqüentes que de tão violentos, tornaram-se animais de convívio impossível para com outros de bem (ou seria de bens?!?!). Mas lá também tem muita gente, que o único mal no coração é a esperteza, estampada nos olhos fundos do choro cansado chorar.

Quem aqui entre nós conhece as celas de uma Polinter ou de uma das penitenciárias de Bangu I, II, III...?

Talvez alguns tenham idéia, mas não a vivência. Talvez alguns imaginem o que exista por trás daqueles portões e muros, mas não passaram os vinte minutos necessários entre os 269 presos que ocupam a Polinter do Grajaú/RJ; não passaram pelo menos vinte minutos atrás dos muros do Nelson Hungria (Bangu VII) com seus 750 detentos. Quem nunca entrou numa custódia provisória ou num presídio, jamais saberá do que se trata. Não adianta tentar explicar.

Hoje tenho certeza que mais três pessoas conhecerão a verdade do cárcere, não por opção ou pesquisa acadêmica, mas por vivência que lhes foi imposta. Para mim eram três ilustres desconhecidos até essa manhã, “Donald”, “Pateta” e “Margarida”, mas que ganharam vida tal como personagens de uma história não tão engraçada.

“Donald” um verdadeiro pato, que se associa a “Pateta” um perfeito idiota, resolvem comprar cinco quilos de maconha em um determinado morro para repassar a alguns compradores de classe média no seu bairro, iniciando assim a empreitada criminosa. Pagam o produto em data pretérita e mandam em momento oportuno “Margarida”, uma manicure, verdadeira mula, que tem duas filhas, uma de quinze e outra de dois anos, buscar a substância, tudo em troca de duzentos reais.

Quando “Margarida” chega a residência do pato “Donald” é abordada e presa com a maconha numa sacola de mão; o “Pateta”, que estava lá só por sua esperteza, vai também preso com os seus amigos. Esse é o início do fim de suas tristes estórias.

Formalizadas suas prisões são removidos para a custódia provisória, enquanto aguardam julgamento. “Donald” e “Pateta” choram muito ao chegar à triagem, não sabem bem o que vai acontecer, como ainda não eram ligados a nenhuma facção, foi mais difícil o destino de qual cadeia os abrigariam, ficaram na Polinter do Grajaú.

Outra que não tinha mais lágrimas para chorar foi a mula da “Margarida”, esta conduzida diretamente para uma unidade do complexo penitenciário do Rio de Janeiro, sua condição feminina lhe deu essa “melhor” custódia, Bangu VII ainda tinha vaga.

E assim termina a manhã de sábado, com mais gente aprendendo o que Garcia Morente queria dizer sobre “vivência”. A propósito, conclui o citado autor: “Entre vinte minutos de passeio a pé por uma rua de Paris e a mais vasta e minuciosa coleção de fotografias, há um abismo. Isto é, uma simples idéia, uma representação, um conceito, uma elaboração intelectual; enquanto aquilo é colocar-se realmente em presença do objeto, isto é, vivê-lo, viver com ele; tê-lo própria e realmente na vida; não o conceito, que o substitua; não a fotografia, que o substitua; não o mapa, não o esquema, que o substitua, mas ele próprio”.

22 comentários:

Alexandre, The Great disse...

Professor Ozéas.

Estou incluído na minoria que vc cita: eu conheço todas essas e mais - Talavera Bruce, Alfredo Tranjam, Laércio Pelegrino, Evaristo de Morais, Padre Severino, Santos Dumont e mais uma dezena de antigas DPs "concentradoras de presos".

Realmente e francamente... tenho que concordar com o seu artigo e com o filósofo: o sistema prisional é a "cloaca da sociedade", e não é apenas uma metáfora, pois só quem as percorreu e 'sentiu' através dos cinco sentidos seus corredores e porões pode fazer tal afirmação.

Sabe qual a diferença entre um presídio, ou casa de custódia no RJ e uma masmorra da França medieval?

Eu não.

Anônimo disse...

Bem escrito.Eu tentei fazer um texto desses , com muito menos categoria e citei Beccaria como uma forma de tentar passar para os meus leitores, que n�o conhecem uma cadeia , que passar tempo dentro dela n�o � f�cil.Mas acho que n�o consegui.Esse est� maior e mais explicado.

Anônimo disse...

Desculpe ,acabei deixando uns acentos.E que o meu sistema nao combina com esse blogger.

Anônimo disse...

Ozéas, boa noite.
Tem razão, claro.
Li Foucault durante um ano, li Hoffman, tentando entender o encarceramento, mas jamais vi um presídio nem por fora, a não ser na TV.
Jamais poderia discutir o assunto, como o Alexandre, pelo que li no comentário dele.
Porém tenho certeza que este é certamente o instrumento por excelência da fabricação de monstros.

Obrigada pela excelente citação. Ela vale não só para o assunto em pauta, mas também para todas as circunstâncias da vida.

Beijos e boa semana para você.

Elaine disse...

Ozéas,
Eu também não conheço um presídio e não sou qualificada para comentar o assunto, mas, o seu texto foi tão profundo que a mensagem ficou muito clara.
Você citou "o Pateta, o Pato Donald e a Margarida". Pois bem, eu já vi além desses "Três" que você citou, irem juntos o,"zezinho, huguinho e luizinho", que não tinham nada com a história. Estes últimos quando não vão para alguém da família acabam no orfanato.
beijos e bom início de semana!
Elaine

Cuba Livre! disse...

Olá, ficaria honrada com sua visita e sugestão.

Cristiano Contreiras disse...

Confesso que nunca visitei uma penitenciária - talvez seja algo necessário e importante a minha vida. Assim, poderia atentar a outros universos dos seres humanos.

Anônimo disse...

Olá mestre: tenho notado tua ausência no meu blog. Vá lá para desopilar o fígado com uma linda estória de Tierra de Poderes... Ahahahahah :-) bjs

Anônimo disse...

Ozeas,

Qualquer pessoa que já passou mais de 30 dias internada em um hospital, com todo conforto e atenção, sabe que só o fato de você olhar a rua pelos vidros fechados e sentir que você esta fora do mundo já é sofrimento. A saudade, a exclusão, a impossibilidade de ir... a única coisa que consola é o fato de saber que só de poder se levantar e olhar pela janela já é sinal que o dia da saída esta próximo.
Imagino o que é estar impossibilitado de se ir estando num local hostil, sujo, sem conforto, sem dignidade, com pessoas tão ou mais sofridas e revoltadas consigo e com o mundo por estar alí.
Qualquer prisão é um inferno e será sempre um inferno por melhor que seja, o melhor que se pode fazer é se manter longe dele.

Mudando de assunto, veja o relatório de auditoria das eleições de Guarulhos 2004, as fraudes nas urnas foram comprovadas.

http://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/guarulhos04.pdf

Não importa em quem a gente vote, as urnas clones darão vitória para Lulla no primeiro turno.

Beijo

Santa disse...

Não conheço o sistema, portanto, não estou habilitada a falar. A única realidade que conheci, pessoalmente, é o produto que de lá sai.

Anônimo disse...

Prof. Ozeas,

Eu não tenho vivência pessoal para saber o que acontece quando se coloca os dois dedos numa tomada ou num fio desencapado, mas me disseram que não é nada bom e eu acreditei.

Os que sofrem de síndrome de São Tomé que tentem fazer o teste e se sobreviverem o suficiente que façam seus relatos, assim é com a cadeia.

Um beijo

Ricardo Rayol disse...

Mestre Ozeqs, pena que só bagrinhos podem passar por esta vivência inenarrável. POr que não so donos da Daslu ou congressistas contumazes nas artes do crime?

PS: Tomei a liberdade de enviar um email com uma receita para sua saude.

Alice disse...

Não conheço, Ozéas mas concordo com a Angela .
Bjins

Serjão disse...

Achei o relato absolutamente atormentador. Não sei se a analogia com algum lugar é apropriada. Num passeio vc tem outras espectativas e só é surpreendido de um outro modo. Se vc está em Paris e vê que o monumento que vc estudou não está à esquerda e sim à direita, vc continua bem pois continua em Paris. No sofrimento, no cárcere como vc frisou, existe o elemento surpresa do fato em si. Vc está bem e de repente está mal;
De qualquer forma não tenho esta dimensão. Como não tenho outras que nunca vivenciei. Mas foi bem legal este post, deu o que pensar. Existe vida inteligente fora da política. Acho que até mais.
Um forte abraço;

Anônimo disse...

SOS BRASIL! Eu quero a minha mãeeeee... manhêeeee! Um senador custa em média 125 MIL REAIS POR MÊS no Brasil!!! SOS BRASIL!

Anônimo disse...

HH NÃO TROCA SUA ROUPINHA PQ PARA ELA 120 MIL POR MÊS É POUCO!!! rsrs

Jorge Sobesta disse...

Ozéas,

é triste ver pessoas que (supostamente) não eram criminosos caiam na ilusão que vender umas "buchinhas malhadas" não é crime.
A lei foi cumprida, tráfico de trogas dá cadeia.
Mas, triste mesmo é saber que esses tres vão para um lugar de onde dificilmente sairão corrigidos. Pelo contrário, com a vida comprometida, vão se especializar na carreira de bandido e quando saírem , teremos mais tres para engrossar as fileiras de criminosos desajustados.
A cadeia não corrige o preso, pois o mesmo vive no ócio, com muito tempo para pensar besteiras num ambiente de total degradação, física e mental.
Preso no Brasil deveria trabalhar. Trabalho forçado, ao estilo filme americano, com direito a roupa listrada e bola de ferro no pé.
Dessa maneira teria vergonha da sua condição de preso, teria menos tempo para pensar bobagens e teria uma existência mais útil. Pensaria duas vezes antes de se arriscar a voltar pra lá.
Mas porque uns poucos se beneficiam dessa situação como está (e lucram muito com isso) estamos aí, pagando passagem aérea para animal passar dia dos pais em casa.
Também num país governado por bandidos no qual o próprio presidente não é chegado a labuta, o cenário não poderia ser diferente, não é.

Um abraço.

Alice disse...

Oi Ozéas td bem ? td certinho ? sumiu , tá legal ?
Bom final de semana :)
Bjins

Alice disse...

Oi Ozéas td bem ? td certinho ? sumiu , tá legal ?
Bom final de semana :)
Bjins

Jorge Sobesta disse...

Ozéas,

é triste ver pessoas que (supostamente) não eram criminosos caiam na ilusão que vender umas "buchinhas malhadas" não é crime.
A lei foi cumprida, tráfico de trogas dá cadeia.
Mas, triste mesmo é saber que esses tres vão para um lugar de onde dificilmente sairão corrigidos. Pelo contrário, com a vida comprometida, vão se especializar na carreira de bandido e quando saírem , teremos mais tres para engrossar as fileiras de criminosos desajustados.
A cadeia não corrige o preso, pois o mesmo vive no ócio, com muito tempo para pensar besteiras num ambiente de total degradação, física e mental.
Preso no Brasil deveria trabalhar. Trabalho forçado, ao estilo filme americano, com direito a roupa listrada e bola de ferro no pé.
Dessa maneira teria vergonha da sua condição de preso, teria menos tempo para pensar bobagens e teria uma existência mais útil. Pensaria duas vezes antes de se arriscar a voltar pra lá.
Mas porque uns poucos se beneficiam dessa situação como está (e lucram muito com isso) estamos aí, pagando passagem aérea para animal passar dia dos pais em casa.
Também num país governado por bandidos no qual o próprio presidente não é chegado a labuta, o cenário não poderia ser diferente, não é.

Um abraço.

+ Kazzx + disse...

Caro Ozeas,

Grande texto, mas permita-me um aparte: para saber o que é certo ou errado não precisa ser Donald (arrogante), Pateta (idiota últil) ou Margarida (Não satisfeita com a profissão que tem (manicure)), um certo Burro de carga desempregado à alguns anos atrás já andou aparvalhado, morto e caindo nas pernas por dias e dias atrás de dinheiro para pagar suas dividas e sustentar sua familia, nada dava certo na vida do burrinho, todos o humilhavam e enxotavam, mas o burrinho nunca pensou em vender maconha, roubar outro miseravel desesperado como ele, nem em coisa similar, chorou (a noite sozinho para que ninguem sentisse pena dele), esperneou (Ficou com cara de louco) não aceitou a situação e venceu (nínguém ajudou o pobre burrinho) e até hoje pode se gabar de nunca ter conhecido o carcere, quem conhece a palavra e a verdade que existe por trás dela pode fraquejar, mas este fraquejamento nunca se transforma em certeza de que o mal compensa, a inveja é a peça motriz de todo o descaminho, por fim acho que não conhecer o carcere é sinal de vitória e orgulho e conhecer Paris é dispensável.


Abçs

Santa disse...

Ozéas, a barbárie me lembra o julgamento de Nuremberg, ao ser mostrado um filme com cadáveres empilhados aos montes, muitos em estado de decomposição, e sobreviventes esqueléticos que mal podiam ficar em pé, o alto escalão nazista demonstrou incapacidade de sentir culpa, nem responsabilidade pelo genocídio, mas com tiradas cínicas tentavam forjar argumentos como o de que eles nada sabiam sobre as barbaridades que ocorriam nos campos.

Bjs