Minhas opiniões e publicações, expostas neste espaço, são reflexões acadêmicas de um cidadão-eleitor, publicadas ao abrigo do direito constitucional da liberdade de expressão

"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

30 julho, 2015

Burras obviedades



Qual a velocidade ideal para evitar acidentes automobilísticos? 80, 70, 60, 50 km/h... creio que não, a forma mais segura ainda é com o veículo sem movimento, portanto, que venha a lei dos carros parados.

O deboche é explícito e manifesto de revolta contra a miopia, não sei se alguém já disse isso, ou talvez seja um resvalo de criptomnésia, embora Nelson Rodrigues se referisse a unanimidade, mas creio que de certa forma toda obviedade é burra e uma das baboseiras é essa: diminuir indiscriminadamente os limites de velocidade nas vias como solução para os acidentes.

Concordo, em velocidades mais elevadas os riscos potencialmente são maiores, não obstante, aprendi no Direito que “cada caso é um caso”, desta forma, não dá para estabelecer uma regra quando tudo que temos são exceções. Há estradas que sequer poderiam receber veículos, suas precariedades de desenho, construção ou manutenção limitam qualquer norma de segurança, por outro lado, existem rodovias onde dirigir em baixa velocidade pode significar grande risco de acidentes, ou seja, observar o particular ajuda bastante a fazer de forma certa, abandonando o cômodo elementar.

Outra obviedade é a blitz policiais para apreensão de veículos, especialmente motocicletas. Sempre que ouço um comando da Polícia Militar anunciando que vai centrar fogo nesta direção penso na obviedade da solução e nos obtusos resultados.

É certo que assaltantes praticam roubos ou fogem de motos, sem embargos, outros crimes também são cometidos usando carros, aviões ou mesmo a pé, no entanto é difícil acreditar que esta seja a derradeira estratégia operacional policial, a apreensão veicular, que na maioria das vezes mais concorre para congestionar as vias urbanas que apresentar resultados concretos.

Difícil acreditar, mas será que seus mentores não percebem que o simples engarrafamento provocado por uma barreira policial já é suficiente para denunciar sua realização, isso sem falar dos livres aplicativos que detectam e informam através de celulares suas localizações em velocidade virtual, pondo por terra o fator surpresa, sem o qual esse tipo de procedimento é inócuo.

Na verdade essas atividades de rua, interna corporis, são batizadas de “operação presença” – é a polícia sendo vista, só isso! –, em essência só se prestam a verificar irregularidades de tributos devidos ao Estado, quanto ao crime, caso esse “trombe” com um bloqueio policial é quase coincidência. Aceitar a hipótese da eficiência das blitz contra o crime é admitir mais uma obviedade, naquela categoria inicial de falta de inteligência.

E por que não juntar a blitz, o acidente automobilístico e o álcool neste sarucutaco de obviedades? Sempre que passo por uma barreira da Operação Lei Seca, fico me perguntando por que as seguradoras não estabelecem que para pagamento dos benefícios, em caso de acidente automobilístico, seja obrigatório o exame de alcoolemia após o sinistro – com cláusula de confidencialidade –, de igual maneira, para os planos de assistência médica, por que não fazer exame compulsório-contratual pós-acidente?

Duvido que alguém correria o risco de dirigir sem cobertura patrimonial e médica, por outro lado, embora draconiana a proposta, poderíamos rever mais uma cômoda obviedade, a taxa zero de álcool no sangue.

Todavia, parece que a obviedade com toda parafernália exibida – bolões inflados, tendas armadas, guinchos, policiais etc. – é maior, não vale a pena tentar solucionar de forma simples se o complicado é mais visível e de certa forma simula preocupação, além de passar a mensagem de que existe alguém no controle e em caso de deslize o infrator será alcançado.

Enfim, no meio de tantas obviedades acabo por duvidar até mesmo de minhas considerações, começo a admiti-las como óbvias demais ao debate, a tal ponto de me comprometer com a possibilidade da burrice.

22 julho, 2015

O “volume morto” do sistema carcerário


Em tempos de seca nos reservatórios de águas, a expressão “volume morto” ganhou fluência e já faz parte do vocabulário cotidiano. Representando a reserva de água mais profunda armazenada abaixo do nível de captação, esta não pode ser coletada somente por ação da gravidade, necessita de bombeamento para extração, é nosso estoque de emergência obtido com um pouco mais de dedicação.

Similarmente, necessitando de especial atenção, o sistema carcerário vive a crise da superlotação, a população presa no país atingiu a conta aproximada de 610 mil pessoas, em agravo, ainda trabalha com um déficit de 231 mil vagas no sistema. Não sendo motivo de orgulho, hoje o Brasil possui a terceira maior massa carcerária do planeta, portanto, o diagnóstico que é alarmante exige respostas equilibradas, fora do lugar comum.

Entre as obviedades que se oferecem está construir mais e mais presídios, sem embargos, não podemos nos dar ao luxo de trocar vagas de escolas, casas populares ou hospitais, por celas.

Outra evidência que se oferece como solução é a proposta privatista dos presídios, que no final das contas não resolve o problema, embora num primeiro instante entoe a canção das sereias, contudo, além de ser sempre dispendiosa tende a agravar a patologia do sistema, que com o passar do tempo se torna enfurecido e ávido por aumentar sua “clientela”, com custo final irremediavelmente pago pela sociedade.

Embora como solução a prisão seja sempre a pior opção, entretanto, abusando da metáfora, creio que podemos pensar no “volume morto” que existe no sistema prisional, ou seja, antes de partir para novos e elevados gastos com construções, ou pensar em atender a ganância do mercado com a privatização da miséria social, confio que se possa “bombear” grande percentual de vagas indevidamente ocupadas nas cadeias, de modo a pelo menos desafogar a superlotação intramuros penitenciários.  

E onde está esse volume a ser captado? Segundo o Ministério da Justiça, aproximados 40% da população carcerária é constituída por presos provisórios, ou seja, não possuem condenação, mesmo assim, aguardam julgamentos sob custódia do Estado.

Por outro lado, aproximadas 158 mil prisões (26%) decorrem dos crimes de drogas, enquanto 46% por crimes patrimoniais e 12% por homicídios.

Destarte, em rápido cotejamento parece que duas frentes devem ser atacadas para que surjam soluções significativas sem novas despesas: por um lado, efetivamente os Juízes devem priorizar a substituição das prisões provisórias pela aplicação de medidas cautelares diversas, conforme determina o Código de Processo Penal, além de zelar pela necessária celeridade nos procedimentos processuais, visando rápidas decisões e julgamentos – é o quinhão judiciário.

Embora estas providências possuam o condão de proporcionar relevante desafogo carcerário, conquanto, tal caminho está atrelado a subjetividades processuais que não vinculam prazos rígidos, assim como ao livre convencimento motivado do julgador, portanto, embora tenhamos boas chances nessa seara, isoladamente não são suficiente para o desafio proposto.

Por outro lado, contribuindo de maneira mais ousada, porém, não menos estratégica, a descriminalização e regulamentação do uso e comércio de drogas além de representar duro golpe contra o tráfico ilícito, também seria medida que implicaria em imediato esvaziamento carcerário com números significativos, isso induz que tal enfrentamento requer racional coragem, inclusive de acarar morais privadas.

A articulação de ambos argumentos não eliminam outras sugestões, ao contrário nossas propostas são apenas componentes motivadores ao debate. O que dizemos é que existe um “volume morto” do sistema carcerário, todavia, para que seja utilizado é necessário especial esforço dialógico na sua busca. No entanto, o certo é que o problema carcerário brasileiro não é de engenharia ou mercado, mas de modelo social, de como pretendemos enfrentá-lo, assim, ou discutimos porquê se prende no Brasil ou estamos fadados a cumprir o trágico destino de fabricantes de cadeias.

16 julho, 2015

Neurologicamente modernos


           
Fruto do final do século XIX, a partir da combinação com outros traços dessa Era, notadamente, a industrialização, urbanização, velocidade dos transportes, crescimento populacional, cultura de massa e da saturação do modelo capitalista, surgiu o que Ben Singer chamou de “Modernidade Neurológica”.
Neste contexto, a “Modernidade Neurológica” retrata uma sociedade fundamentalmente exuberante nos estímulos nervosos, que só reage ao excessivo e sensacional, ao extravagante e descomunal, que deixa de responder a estímulos de inferiores impactos e se sensibilizar com o cotidiano.
A questão, portanto, diante desta atitude “blasé” é como romper a letargia, a pasmaceira, como fazer que nervos e comportamentos hiperestimulados por tantas e excessivas informações e emoções revigorem-se e esbocem reações diante do brando e corriqueiro, como fazer uma pessoa sentir e perceber o simples, o óbvio, quando as sensações estão narcotizadas pela intensidade?
Singer constata, conforme o receituário que vem sendo aplicado, que as “sensações têm que ser cada vez mais fortes para penetrar os sentidos atenuados para formar uma impressão e redespertar uma percepção”.
Pois este é o problema, o que aparentemente nos desperta é o aumento da dose do que nos entorpece, ou seja, o que não mata num primeiro instante nos torna com o tempo resistentes a cura, insensíveis a estímulos de menor comoção.
Incontáveis, os exemplos são cada vez mais visíveis: no esporte, o box perdeu a aura e glamour de “nobre arte” para o UFC, “Definitivo Campeonato de Lutas”, todavia, o que virá depois do “último”? Não me espantará um Coliseu com polegares voltados para  baixo.
Na política, os discursos racionais de longo prazo dão lugar às políticas imediatistas de rápidos e suspeitos resultados, desta forma, quem duvida dos próximos passos: prisão perpétua, pena capital, castigos físicos, qual o limite?
Nas religiões, o fundamentalismo se espalha com veemência, a moral de alguns “profetas” é reescrita todos os dias, sempre em cores mais fortes e limitações acentuadas, assim como a intolerância é a marca do fiel vitorioso. O que será proibido amanhã, quem acumulará toda “verdade” divina?
Não é diferente com a imprensa tecnologicamente virtualizada, que desde o mesmo século XIX oferece registros ilustrados desse ambiente urbano “caótico”, com mensagens alarmistas diatópicas, registrando as “anormalidades” das metrópoles “violentas e frenéticas de choques sensoriais”, e que recorre a comparações com um suposto tempo passado, mentirosamente perfeito, anunciando como estamos ficando cada vez piores.
E o que dizer dos programas televisivos policiais, circos de horrores diários, que repetem incansavelmente as mesmas imagens a cada passagem do trem fantasma, repletas de narrativas raivosas dos agoureiros do apocalipse, apelantes do hiperestímulo do medo, do risco, do suspense e do sensacional.
Fiquem à vontade para incluir outras experiências...
Assim, não há que se estranhar a procura incansavelmente do elixir da felicidade, da droga da euforia, dos corpos mais que perfeitos, dos amores eternos semanais ou de tudo que ultrapasse pelo menos a primeira camada da pele. Nada deve ser pouco e o pouco não nos interessa, até porque somos todos neurologicamente modernos, vivemos do impacto fulminante, da intensidade no corriqueiro, do esbanjamento de palavras, no final das contas, somos todos sensacionalistas.

09 julho, 2015

Coisa de outro mundo...




Gliese, se pronuncia como lê, é um planeta habitado, localizado na constelação de Libra, há 20,3 anos luz da Terra, que atingiu grau de desenvolvimento tecnológico suficientes para passear pelo nosso Sistema Solar e, conforme iniciais mensagens encaminhadas, pretende nos visitar no final de dezembro. Em deferência especial ao Brasil, sua comitiva de governantes quer ver de perto a queima de fogos em Copacabana.

Como parte das primeiras tratativas aproximadoras foram trocadas informações de hábitos e culturas, terráqueas e glieseanas, o que gerou curiosidade recíproca, especialmente para nós quanto a organização social alienígena.

No Brasil, ponto de visita agendado, ao tomarmos conhecimento sobre o planeta, achamos “pitoresco” que existam gliesianos de três cores: vermelhos, azuis e uma massa populacional em diversos tons da cor violeta, fruto da miscigenação dos dois primeiros; nos surpreendeu saber que por lá jorram leis anunciativas de igualdade dos seus habitantes multicoloridos, todavia, quando olhadas amiúde o que se observa é a primazia dos vermelhos sobre os violetas e principalmente sobre os azuis.

Assim, no país da integração e igualdade, do sincretismo e camaradagem, das mulatas, do samba e do futebol, causou desconfiança que a população carcerária em Gliese seja notadamente não-vermelhas, na ordem de 62%; espanto, que na educação glieseanas dois terços dos estudantes universitários são vermelhos, enquanto o número de analfabetos, azuis, representam o dobro daqueles; inacreditáveis, são os dados sobre a segurança, os azuis significam 70% das vítimas por assassinato, com 2,6 vezes mais chances de serem mortos que os vermelhos, decorrendo, a expectativa de vida é menor para os primeiros em pelo menos 20,7 meses.

Naquela sociedade interestelar, a concentração de riqueza também não favorece aos azuis, levando em conta 1% dos mais ricos somente 12% deles tem essa cor, por outro lado, entre os 10% mais pobres pelo menos de 70% são azuis; os índices salariais mostram uma desigualdade assustadora, os azuis ganham 57,4% menos que os vermelhos, ainda que exerçam as mesmas atividades; e, apesar serem a maioria da população economicamente ativa no planeta, somente 4% dos quadros da administração pública são azuis, todavia, como população desempregada ultrapassam 50% do total.

Questionados sobre esse verdadeiro apartheid astronômico, seus representantes responderam: “em Gliese não temos racismo, isso é coisa de alguns azuis recalcados, eles que são racistas, as oportunidades em nosso planeta são iguais para todos, tudo é uma questão de escolha, cada um segue seu caminho conforme índole e dedicação, basta se esforçar, inclusive, todo vermelho sabe indicar algum azul bem sucedido que serve como prova dessa igualdade.”

Por outro lado, aterrissando a ficção em solo pátrio, embora incomodado com minha ilegítima branquitude defensista, muito embora crítica com a notória facticidade, acolho as palavra com Abdias do Nascimento (1914 - 2011), que questionava não práticas interplanetárias, mas as nossas do dia a dia: “O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil, mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e superficial.”


O certo é que nossa igualdade está mais para formal que real, portanto, só poderemos falar em paridade quando as oportunidades forem distribuídas de maneira uniforme; em conquistas meritórias, quando forem afastados antagonismos sociais, negados permanentemente num discurso recheado de preconceitos, artimanhas e inverdades; e, embora as pesquisas indiquem que 87% da população admita que há racismo no Brasil, somente 4% dela se considera como tal, desta forma, parece evidente que falar de preconceito racial por aqui, para muita gente é mito ou coisa de outro mundo.

http://www.ofluminense.com.br/pt-br/cidades/coisa-de-outro-mundo