Minhas opiniões e publicações, expostas neste espaço, são reflexões acadêmicas de um cidadão-eleitor, publicadas ao abrigo do direito constitucional da liberdade de expressão

"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

14 novembro, 2012

Os mistérios de Gabriel




É interessante como somos perseguidos pelo destino, como gira a roda da fortuna, como há sincronicidades latentes entre pessoas, ou entre pessoas e objetos, na expressão usada por Saulo Ramos, verdadeiros “códigos da vida”. Para mim a prova cabal desse “místico” envolvimento, pessoas e coisas, está presente no romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez.

Talvez não tenha lido algo mais instigante que a história dos Buendías, de todos os Josés e Aurelianos que se repetem ao longo do enredo. Já nem recordo mais quantas vezes citei a obra que tornou o autor um de meus prediletos, me compelindo a partir dos Cem Anos, ao “Amor nos tempos do cólera”, a “Crônica de uma morte anunciada” e ao “Memórias de minhas putas tristes”; embora minhas escolhas tenham sido de qualidade, lamento ter lido tão pouco de Marquez, ainda lerei mais, o colombiano disputa meu tempo com o peruano Mário Vargas Llosa, nessa grande literalidade concorrente sul-americana.

“Cem Anos de Solidão" é belíssimo, rico em detalhes, duro como uma poesia de combate e suave como a imaginação infantil; pelo livro pude passear por Macondo – vilarejo onde se desenvolve a trama centenária – com suas borboletas amarelas, delatoras dos apaixonados; conheci o cigano Melquíades e a descoberta do gelo por um dos Josés, que ingenuamente o chamou de “maior diamante do mundo”; imaginei a “doença da memória” narrada pelo autor, que obrigava aos moradores do povoado a pendurar etiquetas nos objetos, para que seus nomes não fossem esquecidos, que por óbvio desenvolvimento da moléstia, restou que também acabassem por esquecer como se faz a leitura das letras, palavras... enfim, impossível descrever todas as sensações que me acolheram ao ler o livro.

A obra é de tamanha envergadura que se estilizou pelo continente, até aqui em terras brasileiras, foi recordada em sua essência imaginária; Dias Gomes em razoável adaptação – nunca assumida como tal – escreveu “Saramandaia”, novela televisiva que se desenvolve num realismo fantástico, próprio de Garcia Marquez e seu livro maior, porém, incomparável sob qualquer parâmetro que se utilize.

Não importando todas as sensações que o livro me deu, hoje sou surpreendido com uma matéria bastante interessante disponível na internet, outro sinal sincrônico de minha aguçada imaginação, descubro que o livro em comento foi classificado pelos italianos como uma das “dez obras literárias que os leitores não conseguiram acabar de ler”, na pesquisa feita “através do jornal Corriere della Sera, do Facebook e do Twitter, os italianos se mostraram divididos” quanto aos livros mais impossíveis de serem terminados. (para ler a matéria, clique aqui)

Não sei se fico envaidecido ou indignado com a notícia. Se por um lado, quase me sinto dotado de poderes de compreensão extrassensoriais, além da suposta média italiana, por ter conseguido ler não uma, mas duas vezes o romance e pasme, gostado; por outro, sinto certa indignação com o que considero evidente mediocridade no antigo continente, me parece ser essa a melhor das duas opções. Mas isso na verdade não importa, não é o objetivo do texto, que pretende flanar pelos “mistérios” das coincidências e acasos da vida.

Livro e autor me acompanham, só nesta semana por pelo menos três vezes fiz sua indicação, inclusive em uma dela tive a confirmação da compra como presente para terceiros; novamente, hoje em minha caixa de e-mails está lá outro texto de Garcia Marquez; agora, abro o noticiário e me vem de soslaio a pesquisa italiana.

Macondo realmente me persegue, a fantasia de Marquez se materializa constantemente aos meus olhos. Essa relação poderia se dar com Jorge Amado, Antonio Callado, Eduardo Galeano, Ferreira Gullar, ou mesmo como citado o próprio Llosa, com quem tenho maior intimidade numérica de texto, entretanto, é Gabriel Garcia Marquez quem habita meu cotidiano, já na simples identificação pessoal com seus títulos; Marquez aparece de onde menos espero e faz o giro da roda da vida parecer ser mais emocionante e misterioso.

De qualquer forma, não tenho porque reclamar dessas relações coincidentes e repetidas em várias ocasiões, até porque quando ocorrem estou em boa companhia; minha decepção fica por conta dos italianos, me surpreenderam com tamanha falta de imaginação.

11 novembro, 2012

Pecado Original (Caetano Veloso)



Good Morning, Vietnã! Domingo é assim mesmo, silencioso em seu início, pensativo no seu desenrolar e previsível no seu fechamento, sem muitas novidades, salvo uma possível antecipação de título para o Tricolor, ai sim, terá sido um grande dia.

Fora o noticiário político, criminal e esportivo - não necessária mente nessa ordem - das grandes mídias, que disputam a atenção de seus leitores, há muito pouco de novo em destaque que me chame atenção, na verdade chego a admirar a criatividade com que estão sendo pautadas as manchetes, na falta de melhor assunto, aparecem sempre as famosas pesquisas que revelam gostos e comportamentos, no final mais parecidos com receitas de sucesso ou, como nos tempos de seu apogeu, minutos de sabedoria (no Face não dá para sublinhar com itálico, pena!).

Quanto espaço público desperdiçado com conclusões inconclusivas(!), porém, com fieis leitores que aceitam as fórmulas de maneira passiva, as receitas fazem sucesso, de outra forma, certamente, não estariam enchendo as páginas dos sites; espaço público que não gera esfera pública parece no final das contas uma baita perda de tempo, enfim, não me cabe fazer juízo de valor das preferências alheias, nem é também o propósito explicar a diferença entre espaços e esfera pública nesse momento, quando muito, comentar por mero diletantismo dominical.

Nessa profusão de “dicas, truques e quebra-galhos”, encontrei uma pérola no portal IG, destacado em manchete de primeira página: Saiba os presentes que elas odeiam (Pesquisa aponta presentes que mulheres odeiam ganhar) – clique no link para ler integral.

Não dá pra mentir, a chamada do artigo é curiosa, nada mais que isso, curiosa; assim, como é domingo e o tempo não me incomoda quando sorvo minha caneca de expresso e fumo o primeiro cigarro do dia, passei a leitura daquilo que pode significar a salvação das relações com o sexo oposto, uma pérola.

Das conclusões que a tal pesquisa apurou, o destaque dos dez presentes mais odiados me colocou em situação delicada, até porque fora o listado, minha criatividade está limitada ao bolso, minhas provisões orçamentárias não permitem carros, viagens ou ilhas gregas como opção, portanto, a seguir o receituário da felicidade é melhor sequer presentear; ok concordo, aspirador de pó não é um baita presente, mas para quem já ganhou em certa ocasião uma panela de pressão no aniversário (eu ganhei!), até fica carinhoso um buquê de flores, um perfume, ou lingerie.

Sem querer estragar a leitura do artigo, que mudou a minha vida de hoje para frente, transcrevo a lista de pérolas e críticas publicadas, só para facilitar a compreensão do que estou falando.

1. Roupa íntima - Tamanho errado ou muito vulgares
2. Produtos de higiene pessoal  Marcada errada ou indicam que a mulher não é asseada
3. Perfumes  Não gostam do cheiro da marca escolhida
4. Utensílios de cozinha  Mostra que eles as veem como empregadas
5. Bijuterias baratas  Indicam que eles são avarentos
6. Chocolates  Marca que elas não gostam
7. Sapatos ou chinelos  Tamanho errado
8. Aspirador de pó  Insinua que a casa dela deveria ser mais limpa
9. Flores  Eles nunca lembram o tipo favoritos delas
10. Roupas de ginástica ou DVDs de exercícios - Sugerem que ela precisa emagrecer
  
Ou seja, conforme os especialistas do mercado (sempre o mercado!), tenho errado muito em minhas escolhas, entretanto, por compensação e alívio não erro sozinho, todos os homens erram em querer simplesmente fazer a corte, atribuir um mimo na troca de um simples sorriso; portanto, das duas uma, ou estamos diante de mais uma daquelas enormes baboseiras com as quais perdemos nosso tempo, sorvendo um café e fumando um cigarro, ou no final das contas, se os gurus comercias estiverem certos terei que concordar com o que um dia pontificou Caetano Veloso: “Mas a gente nunca sabe mesmoQue que quer uma mulher

No mais, bom café e bom dia, afinal, esse post também não é lá tão diferente em criatividade dos que estão nos links midiáticos nesse domingo.

28 outubro, 2012

E agora Luiz, a festa acabou... (breves considerações)



Nota: Texto escrito antes de 28 de outubro, dia da realização do segundo turno eleitoral, porém, propositalmente, só publicado em momento posterior.

A onda moralizatória, que até então já vinha se avolumando no país, ganhou força e foi intensamente explorada, principalmente pelos partidos e alianças que enfrentaram candidatos do Partido dos Trabalhadores - PT, nos locais onde ocorreu o segundo turno para o Executivo Municipal.

É fato que os discursos da anticorrupção, da proteção social, do fim do uso da coisa pública em detrimento privado, do combate desmedido a criminalidade e da banalização da criminalização não foram inventados para uso instantâneo, especificamente, para o pleito eleitoral de 2012, basta observar a classe média, espectadora saciada momentaneamente, aplaudindo barbáries policiais nos cinemas (“Tropa de Elite” I e II), ou espetáculos midiáticos em filmagens televisivas de recebimentos de propinas por agentes públicos, ou mesmo, literais linchamentos de criminosos justiçados nas ruas das periferias.

Todavia, com as condenações impostas pelo Supremo Tribunal Federal – STF, aos denominados “mensaleiros”, expressão cunhada na porta de alguma redação de jornal a partir de astuta observação opositora, que bem soube explorar sua subjetividade e sonoridade ainda nos anos de 2005, o Partido dos Trabalhadores (em especial), teve que enfrentar severas críticas e passou a ser a representação daquilo que, quando era oposição, tanto condenava, afinal, os sentenciados não são meros militantes de terceiro ou quarto escalão do partido, bagrinhos despreparados ou ladrões de oportunidade, mas cabeças coroadas e muito próximas de seu maior ícone, Luiz Inácio Lula da Silva. Em metáfora, o PT de pedra virou vidraça, e de toda forma, após cada alvejada que sofre, tenta cobrir com papelão de remendo os estragos causados em sua fachada.

A questão que se coloca é que ao abdicar da autocrítica, o PT prestou um desserviço à causa democrática, isso porque, negando, como ainda faz, com veemência, a existência do esquema de uso de dinheiro público para compra de votos parlamentares, viabilizadores de suas propostas política, também abriu mão de capitanear as necessárias reformas  àquelas práticas corruptas, tão comuns na política nacional. O PT não inventou o “mensalão”, sabe-se disso sem ingenuidades, tal prática sempre permeou as relações executivo/legislativo, ora através da distribuição de cargos públicos; ora pela fruição de vantagens em licitações; ora por via de empréstimos junto aos bancos públicos com juros irrisórios (ou mesmo inexistentes), com prazo a se perder de vista; ora com a distribuição de dinheiro em espécie, propina, como ficou demonstrado no julgamento da Ação Penal 470/STF.

Portanto, a cobrada autocrítica ao Partido dos Trabalhadores, não seria somente bem vinda sob o ponto de vista intrapartidário, mas fundamental para toda sociedade, isso porque, representaria a condenação das práticas espúrias até então instauradas, teria o condão de reconduzir valores éticos ao seio das relações políticas; todavia, o silêncio e anuência do partido, inclusive com desagravos pós-condenação, em nome da “causa maior” revolucionária, igualou no modo de fazer política o PT e seus opositores.

O Partido dos Trabalhadores bem sabe o custo que representa admitir seus erros, ao caminhar pela via utilitária, própria da ética “burguesa”, por isso prefere não se abrir a essa autópsia, receia que o custo seja maior que o benefício final; insiste na negativa à crítica sob a premissa da necessidade de transformações mais profundas na sociedade, repetindo o discurso “que os fins justificam os meios”, ou naquilo que considera a melhor das conclusões: que, por ainda estarmos na fase pré-histórica da sociedade, todos os meios são válidos para se alcançar os objetivos políticos e estes devem ser precipitados, logo, violar a ética burguesa é uma ação revolucionária.

O Partido dos Trabalhadores, com esse comportamento irreflexivo, entretanto, entra em profunda contradição performativa, ou seja, seu discurso permanece o mesmo, porém, sua prática lhe nega legitimidade, tal racionalidade estratégica evidencia que se tornou ontologicamente igual aos que sempre combateu.

Abra-se parêntese, sob esse paradigma a razão é dominação, não há alternativa senão aquela que tenha o mesmo sentido finalista, qual seja, o poder; ainda que se tente a legitimação, justificada nos propósitos da construção de uma sociedade mais justa, porém, a razão permanece fundada sobre a premissa da vitória de determinado coletivo da sociedade sobre outro, logo, continua sendo a expressão da conquista do poder através da aniquilação do inimigo, destarte, a práxis em nada difere do grupo dominador que se pretende substituir, além do discurso das boas intenções, todavia, de igual modo, representa o interesse de apenas parte da sociedade.

Outra questão que surgiria, em especulativa autocrítica do PT, não menos ligada ao tema inicialmente proposto, seria o enfrentamento de mais uma de suas fragilidades interna: a construção do mito, o culto personalista da figura de Lula, verdadeiro ídolo com pés de barro.

Inobstante a sua trajetória, merecedora de destaque e exemplo militante sob vários aspectos, há que se estabelecer um novo marco no personagem Lula após sua posse como Presidente.

Elevado ao cargo maior do poder nacional, Lula foi gradativamente sendo dirigido, ou por opção própria, já que goza dessa autonomia, para acordos e alianças que descaracterizaram suas iniciais feições políticas. Sem adentrar em pormenores, enfatize-se, porém, que Lula adotou a postura do reconhecimento da identidade dos desiguais na sociedade, tratando diversos de seus aliados e a ele próprio como pessoas acima da lei e do controle coletivo; como exemplo desse outro Lula, que abdicou de um discurso histórico republicano, cite-se, quando proferiu a frase: “Sarney tem história para que não seja tratado como se fosse pessoa comum”.

O que conclui-se da fala lulista é: que nem todos são iguais perante a lei, embora todos os súditos devam ser seguidores das regras gerais, porém, à alguns é permitido seu contorno; ainda que por mera questão estratégica de governabilidade, todavia, essa razão fez-se caminho para a admissão de qualquer irregularidade justificável em nome do “interesse maior”. 

Assim, se retorna a questão inicial, uma moralidade flexível; o que se permitiu, logo em primeira análise é que tudo é possível e permitido no campo ético-político, desde que, quem o faça pertença a determinado estamento (sob uma concepção weberiana); dizendo de outra forma, aos amigos e aliados tudo é permitido.

Enfim, a necessidade da autocrítica petista serve de ensaio para reforça uma posição que venho defendendo, qual seja, que a bandeira da moralidade pública deve ser empunhada pelas forças democráticas e progressistas, antes que segmentos mais atrasados da sociedade, de maneira oportunista assim o façam (como já vem fazendo), comprometendo o estado democrático de direito. 

Pelo exemplo se adquire legitimidade; as  forças comprometidas com a democracia devem a todo tempo se expor, de maneira sincera, cortando na carne quando for preciso, para que obtenha confiança e respeito da coletividade; não basta que o discurso seja diferente, deve-se trilhar um caminho demonstrando que a prática se coaduna com a teoria, a meu ver, o ponto de partida para esse reconhecimento é a autocrítica.

Dessa reflexão, além da reconstrução interna do partido, em resgate de valores dos tempos de sua fundação (e a regra não vale só para o PT), poderão surgir outros frutos. Ao se abandonar a lógica estratégica-instrumental, se afastam as perspectivas meramente negociais, espaço em que cada grupo tenta impor ou preservar o máximo de vantagens e privilégios; no modelo comunicativo que ora proponho e, que parte da inicial reflexão interna de um partido político, abre-se a oportunidade para que cada qual se veja integrante, não só de um partido reconstruído, mas integrante de uma sociedade onde aquele partido, também consegue se ver e pode representar; decorrente, a participação não significará a vitória de somente uma de suas partes, mas fará surgir o sentimento de pertencimento a um todo.

A razão não deve ser usada como ferramenta de dominação, mas como instrumento de libertação. É mister, portanto, abandonar a estreita leitura que apontam há uma só resposta diante de uma tese, entendendo que há possibilidade de se obter à mesma pergunta ou problema várias alternativas. Destarte, acredito que existam outros modos de fazer política, fora dos modelos tradicionais de usos e trocas, aceitos como naturais pelo PT enquanto governo.

Portanto, ainda que inafastáveis, as discussões das questões de moralidade, estas não podem se prestar como instrumento, que desemboque em maior controle da sociedade, restringindo liberdades individuais e coletivas, anulando avanços duramente conquistados no processo de construção do estado democrático de direito, mas sim, deve servir como detonadora, ponto de partida e aprofundamento da sociedade que se almeja, diante da facticidade possível. Não há, portanto, outro campo, senão o democrático para se travar essa discussão, sob o risco do alto preço que se venha pagar, pela negligência ou encabulamento na empunhadura dessa bandeira ética.

Uma vez delimitado o campo democrático, como o espaço para se travar esse debate, se afastam determinadas possibilidades de dominações, como no exemplo norte-americano, frente ao recrudescimento dos direitos fundamentais pós 11 de setembro, que travestido da justificativa de proteção social serviram a ampliação dos mecanismos de vigilância e controle da sociedade; desta forma, de igual maneira, a questão da moralização da coisa pública não pode servir a esses obscuros propósitos.

Encerro: sem uma autocrítica severa, profunda, das forças que compõem o espectro democrático, em especial recorte o PT, destacado no texto, não se estará perdendo somente a oportunidade de avançar, mas também, se alimentará o que há de mais atrasado para a sociedade, o fascismo e suas vertentes maquiadas.

22 outubro, 2012

Juiz penitente (Albert Camus)



Durante muitos anos imaginávamos, que no “futuro” a sociedade de controle seria instaurada caso não resistíssemos, portanto, o combate deveria ser permanente. Os órgãos oficiais de informações eram os vilões da história, bisbilhotando e relatando nossos passos, preferências e relacionamentos, informavam ao Estado, que assim pretendiam controlar seus membros.

De modo, toda e qualquer medida que visasse identificar, cadastrar, ordenar, catalogar ou qualificar os membros sociais deveriam ser veementemente combatidas; resistindo, evitaríamos ao máximo uma sociedade orwelliana, prevista nos molde de “1984” e outras obras de ficção, não menos preocupadas com a dominação do indivíduo pelo Estado.

O inimigo era o Estado e sua ambição de dominação dos seres; em seus bancos de dados não faltavam dossiês, produzidos muitas das vezes com relatos imprecisos ou subjetivismos dos investigantes, ainda que com certa “eficiência” ao que se propunha, porém tais informações ainda deixavam espaços à resistência, eram fragmentárias, desconexas e seus cruzamentos equivaliam a longos e difíceis exercícios de práticas policialescas.

Todavia, com o avanço tecnológico na produção e armazenamento da informação as coisas foram se modificando, os dados, antes registrados em pálidas fichas de papel, passaram a fluir com maior velocidade e organização, através da via cibernética; órgãos que compunham autonomamente o sistema de monitoramento dos cidadãos foram sendo unificados ou aproximados, as trocas de dados foram capilarizadas, ficou mais fácil e rápido a resposta do Estado a qualquer tentativa insurgente.

A preocupação, daqueles que um dia sentiram na pele os efeitos do aparelhamento estatal-policial, conduziu a resistência para a limitada lógica da positivação dos direitos, acreditavam, em tradicional equivoco, que a lei seria instrumento capaz de frear as desmedidas invasões da individualidade; cite-se, por exemplo, a previsão do habeas data na Constituição brasileira de 1988, remédio jurídico, onde se depositou esperanças em manter sobre certo regramento os dados sensíveis dos cidadãos. Travava-se uma guerra, entre o interesse público e a vida privada, entre a soberania do Estado e o indivíduo, de tal maneira, que a questão apresentada indicava como melhor forma de resistência o controle dos controladores, limitando ao máximo a produção, a manipulação, o arquivo e acesso das informações.

Pois bem, em minha avaliação, perdemos essa guerra, ou melhor, nos rendemos aos encantos de habilidosos diplomatas formados na arte da informação e contrainformação, que por recursos transversos nos recrutaram como verdadeiros agentes infiltrados; fomos convertidos sem resistência ou reclamações maiores, tudo nos agrada, desde que seja confortável e lúdico.   

Na atualidade, damos vistas às nossas intimidades voluntariamente, não opomos a menor resistência a qualquer controle, pelo contrário, facilitamos nossos vigilantes ao máximo, quando, desde ingênuos cadastros em contas de e-mail a sites de compras ou instituições financeiras (bancos, cartões de crédito, pague fácil etc.), passamos todos os nossos dados ao mercado, também, quando confeccionamos algum documento num órgão público (identidade, passaporte, habilitação etc.), isso sem contar a imensa quantidade de particularidades deixadas ao rastreio pelas redes sociais, com direito a nossas fotos, de amigos e familiares, chegando a ponto de expor o que comemos, bebemos, nossos secretos fetiches e até nosso exato pontos de localização (check-in), naquele instante, no mesmo diapasão, a permanente vigilância panóptica por câmeras (“sorria, você está sendo filmado”), comumente aplaudidas, em nome de nossa “segurança e controle”, além dos registros de vistos de estada, dados de embarques e por ai vai; inexoráveis dados vitais a quem tenha acesso e pretenda cruzá-los, na busca de nossas individualidades ou liberdades.

O controle e domínio de nossos atos são tamanhos, que chegam ao ponto de dar saudades das cartomantes, quiromantes, astrólogos e adivinhos em geral, que se valiam da mera intuição divinatória, ou exercícios psicológicos, dizendo nosso “passado, presente e futuro”, para no final nos confortar a alma, carentes incansáveis que somos na busca por uma vida melhor. 

Nesse paradoxo, perdemos a própria ingenuidade de acreditar que somos livres, para mudar com facilidade o que queremos, se é que ainda percebemos querer mudar alguma coisa diante desse estado de hipnose; é complexo o processo de emancipação, são estreitos os caminhos e difícil a passagem para a autodeterminação, cada vez mais somos transformados, não transformadores.

12 outubro, 2012

Os equívocos da neutralidade



Lembro em certa feita, ainda acadêmico de Direito da UFF, lá pelo 5º período, que um colega, Rogério Vilar Lira, munido de uma filmadora 8mm e correndo o chapéu para comprar fitas, resolveu produzir um filme sobre a Faculdade de Niterói; todo empolgado, afinal, acabara de ler o livro Roteiro, de Doc Comparato, e na sua animada juventude transformadora, desejava registrar o Curso, “como ele é” (palavras do próprio).

Foi nessa ocasião que outro colega e amigo, inclusive hoje no Face, Lícius Coelho, lhe fez uma singela indagação, ainda que em tom de deboche: “mas qual será a ideologia do filme?” Plausível questionamento, afinal, por trás de das lentes haveria uma pessoa, que transmitiria o seu olhar, a sua interpretação sobre o que resolvesse filmar, selecionando ou afastando imagens, escolhendo conforme critérios pessoais o que seria mostrado e o que não atendesse suas expectativas de verdade.

Recordo bem, a ingênua resposta de nosso aprendiz de cineasta: “o filme não terá nenhuma ideologia, será neutro”; não pude resistir à gozação que se seguiu com o comentário afirmativo do Lícius: “então você vai soltar a câmera no saguão e ela flutuará pela faculdade aleatoriamente, decidindo o que ficará registrado”, confesso que sorrindo também entrei no sério deboche que seguiu. Creio que o Lícius sequer se lembre dessa passagem (ele dirá), mas para mim, iniciante na arte política, o fato ficou marcado como uma espécie de “parábola da neutralidade”.

Dessa singela gozação, guardei uma grande lição: não há neutralidade, todo olhar humano, toda ação, qualquer movimento que se faça é provido de subjetiva ideologia. Ainda que digamos que nos posicionamos no campo da neutralidade, essa postura já é ideologizada, se faz comportamento e compromisso político, portanto, sujeito a elementar lei de causas e efeitos.

Veja-se, por exemplo, a questão da igreja católica durante a Segunda Guerra Mundial, comportamento a propósito já reconhecido pelo próprio Vaticano; a aparente neutralidade dos sacerdotes e do Papa no período custou muitas vidas e destruição; de igual maneira, na história mais recente, a America do Sul viveu entre as décadas de 1960 e 1980 períodos de chumbo, também durante as ditaduras militares implantadas no Cone Sul, era comum se ver padres e bispos abençoando obras e ações dos usurpadores. Enfim, não faltariam exemplos do custo que representam as formais neutralidades.

Insisto na tese política proposta, dizer-se neutro é como se esconder no armário durante a discussão do casal, ainda que você tenha tudo a ver com o desentendimento, aguarda quieto e em silêncio, imperceptível, esperando o momento mais apropriado para voltar à cama que já ocupou, ou sair correndo com as calças nas mãos por ruas desertas. Afinal, proclamar que “não tem nada com isso” é hipocrisia, pois quando a cama está quente e as condições objetivas permitem, é lá que deita nosso herói oculto, em outras palavras, quando termina o momento da responsabilidade volta, içada à condição de “oposição imaculada”, resurge na semana seguinte, para continuar formulando e propondo, porém, sem compromissos verdadeiramente assumidos, senão com as palavras, vive de atribuir responsabilidade aos outros.

Aplicando na prática: o PSOL tenta se afastar da “orgia política” (a expressão no caso é minha) de Niterói, acredita que conseguirá manter essa condição paladina e guardiã da moral e dos bons costumes políticos, algo assim com um dia foi a Tradição Família e Propriedade – TFP, só que de esquerda; tal posição não me surpreende tanto, na verdade era até certo ponto esperado, posto, como um dia já afirmado, “os extremos na prática se encontram”.

O problema é que ao eximir-se da responsabilidade, atirando-se na neutralidade, coloca em prática a “solução final”, ou seja, equivale a jogar-se nos fornos de Auschwitz mais uma centenas de judeus, porém mantendo-se com a consciência tranquila de não ter negociado com nenhum oficial da Gestapo.

Nesse ponto recomendo aos amigos puros e imaculados do PSOL, o filme “A Lista de Schindler”, lá no filme, história real, o empresário Oscar Schindler participava com suas atividades empresariais do regime nazista, todavia, seus esforços internos eram no sentido de alimentar, proteger e guardar vidas, chegando ao ponto final de comprar, literalmente, com todos os seus recursos, o máximo que pode de homens, mulheres e crianças, cujos destinos traçados por seus algozes certamente não seriam outros, senão em algum forno de extermínio. Schindler fez política no momento mais difícil e da forma menos improvável, todavia, os resultados ficaram na história, os mais de mil judeus comprados se multiplicaram em novas gerações e hoje contam essa história, de como fazer política com princípios e estratégia.

Fazer política é assim, entender que existe uma ética que não devemos abandonar, porém, a omissão participativa significa que os espaços da ética e dos princípios que acreditamos serão ocupados por outro, não tão éticos, se não o fizermos.

Não vou voltar à discussão do voto útil ou da diferença entre os competidores do segundo turno eleitoral em Niterói, disso já falei no último post do Blog (Farinha do mesmo saco ou dane-se a população), acho que ali abordei bem alguns argumentos; neste texto, só pretendia discorrer um pouco sobre a infantilidade de práticas políticas, que acreditam na pureza da neutralidade sem consequências. Para mim, entretanto, a posição do PSOL em Niterói está bem clara: é um partido que nasceu para ser de oposição, não tem experiência administrativa porque nunca administrou (“Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais”), não faz política porque não há interlocutores à sua altura, portanto, jamais saberá enfrentar os desafios políticos fora de uma perspectiva de “pátria ou morte”.



10 outubro, 2012

Farinha do mesmo saco ou dane-se a população



Devo ter sido uma das primeiras pessoas a elogiar a campanha do Flávio Serafini, fiz isso publicamente, durante todo o processo, e imediatamente ao término das apurações, na própria rede social do Faceboock. Ainda que partidário da candidatura pedetista do Felipe Peixoto, reconheço, falei e agora confirmo, Flávio pautou-se no primeiro turno eleitoral da cidade de Niterói/RJ em proposta concretas, ainda que muitas vezes, em minha opinião, inexequíveis  mas com o devido espirito democrático, ouvimos, avaliamos e respeitamos; outra característica da campanha do Flávio foi sua retidão de comportamento, pelo que pude acompanhar, o então candidato a prefeito agiu de maneira ética e concentrou seus esforços na divulgação de sua plataforma. Enfim, Flávio foi o que esperávamos de um candidato durante a eleição: um agente político, partidário, divulgador de compromissos, assumidos publicamente à sua realização.

Passado o primeiro turno, Niterói se vê diante da obrigação constitucional de alcançar maioria dos votos validos entre os dois primeiro colocados, no caso, Rodrigo Neves (PT) e Felipe Peixoto (PDT), ambos estarão no dia 28 de outubro cumprindo essa proposta, de buscar a máxima representação entre os cidadãos, a guisa da maior legitimidade possível, conforme as regras vigentes.

Logo que foi encerrada a apuração, imediatamente, se verificou que o terceiro colocado no pleito, Flávio Serafini (18,40%) e o quarto colocado, Sérgio Zveiter (8,80%), se tornaram com seus percentuais, peças fundamentais e estratégicas à maioria que se pretende obter na próxima etapa.

Como esperado, a adesão de Sérgio Zveiter ao candidato do Partido dos Trabalhadores - PT, Rodrigo Neves, foi instantânea; afinidades, compromissos e mesmo participação em grossas fatias do poder estadual e federal, aproximou o que naturalmente já se confunde na prática, Rodrigo e Zveiter, embora não sejam iguais, são muito semelhantes e possuem os mesmos aliados em outras empreitadas .

Por sua vez, Felipe Peixoto, ligado ao atual prefeito Jorge Roberto Silveira através de sua sigla partidária, o Partido Democrático Trabalhista – PDT, buscou o flerte político com Flávio Serafini, não tanto pelas mesmas razões da dobradinha Rodrigo/Zveiter, porém, pelo compromisso de renovação e transparência administrativa, através de uma gestão social-democrática, que se confirmada a aproximação ao PSOL, mais estreitaria os vínculos e compromissos sociais e evolucionistas da sociedade niteroiense.

Todavia, acompanhando o noticiário, verifico que Flávio Serafini, ou o PSOL, esse detalhe não faz diferença, nega as flores de aproximação do Felipe-PDT, típicas de um namoro, que poderia selar uma aliança socialmente comprometida com a melhoria das condições de vida dos cidadãos de Niterói.

Ao que parece, assim leio no noticiário, Flávio não quer a aproximação, para ele todos são iguais, nada diferencia Felipe de Rodrigo, chegando ao ponto de inicialmente pregar o voto nulo no segundo turno, recuando, porém, diante da radical e evidente estreiteza de sua posição, passando para o discurso da “liberação” de seus eleitores, algo como se lavasse as mão do processo político que virá.

Um tanto quanto arrogante a postura do PSOL, ou do Flávio, pouco importa, que faz ares de última bolacha do pacote (palavras de minha filha), ou do cara mais bonitão da cidade, cujo às meninas só restam duas opções diante de uma solteirice inevitável: “ou eu ou ninguém”.

Política se faz com avanços, ora mais rápidos e profundos, ora mais rasos e lentos, porém, jamais se pode conspirar ou aceitar recuos. Ao optar pela “neutralidade”, Flávio-PSOL abandona seus 18,40% de eleitores a sorte do “Deus dará”, ou seja, com ou sem a participação do Flávio-PSOL, haverá um prefeito eleito após 28 de outubro, isso é certo, todavia, visando não se “contaminar”, o ex-candidato usa do discurso da equivalência dos remanescentes como se eles fossem iguais.

Querido Flávio, diz a sabedoria, que nem os dedos das nossas mãos são iguais, da mesma forma, incluo gêmeos univitelinos, ou qualquer objeto, ainda que produzidos numa mesma prensa ou fundição. Se todas as coisas no mundo possuem a essência da unidade, principalmente, assim são as pessoas.

Retirar essa característica, a unidade, é desprezar o que torna cada coisa especial, é considerar toda farinha de um mesmo saco como igual, ainda que nesse mesmo caso, cada grão tenha sua microscópica identidade. 

Entre o branco e o preto, há uma infinidade de tons de cinza; Felipe não é Rodrigo, Rodrigo não é Felipe, disso nenhum de nós tem dúvida, ainda que, oportunisticamente, se possa usar desse chavão.

A omissão do PSOL terá um preço a pagar, cuja fatura será debitada não ao partido, mas à população; a estratégia lógica-instumental de se eximir a escolher quem apoiar no segundo turno em Niterói, visando unicamente garantir a imagem de “integridade”  partidária é muito cara e dolorida, principalmente para os mais necessitados e combalidos.

A mim, mais me parece, que é a mensagem transmitida é algo como: “bem feito pra vocês, que não escolheram o melhor”; o “danem-se” político não é justo com o povo, seja Felipe ou Rodrigo, o Flávio-PSOL tem o compromisso público de indicar um dos dois, o candidato-partido não se representa mais sozinho, é detentor de 18,40% da população eleitoral, sua aparente neutralidade é mais comprometedora do que possa parecer.

Coragem Flávio, assuma a responsabilidade que seus eleitores depositaram em você; coragem PSOL, não tenha vergonha de ultrapassar a capa turva que cobre a água, por baixo dela pode fluir água limpa e cristalina, que vocês podem estar ajudando a resgatar.

22 setembro, 2012

A água que não beberei



Algumas pessoas costumam projetar suas ambições, expectativas, desejos e interesses para um momento bem próximo, o logo a seguir; é claro que questões mais simples, onde o que está em jogo são vontades singulares, desprovidas de maior complexidade, bem se resolvem com poucos movimentos e resistência, porém, aquelas mais complexas, formadas por variantes e forças antagônicas, onde há também “do outro lado” ambições, expectativas, desejos e interesses, essas se fazem mais difíceis de solução em curto prazo.

É comum se ignorar que o processo histórico se dê através de uma linha ainda não escrita, que será contada pelo próprio protagonista, portanto, não há caminhos de certezas, ou movimentos que garantam que saindo de um ponto “A”, em linha reta, invariavelmente, se chegará a um ponto “B”, não há lógica na física ou matemática, que apresente equações tão precisas para o comportamento social; as variantes são infinitas, um gesto bem ou mal dito pode desandar toda a receita, um dia de chuva ou sol, pode mobilizar ou desmobilizar toda uma prévia estratégia, enfim, qualquer coisa é fato a ser considerado, onde a única garantia que temos é que os objetivos poderão ou não ser alcançados.

A propósito, sempre é bom lembrar, que a história não se realiza por saltos, sua construção é diária; não fizemos aproximados seis bilhões de anos caminhar em sete dias, como se fossemos um criador celestial; nossos ancestrais répteis, para alongar suas caudas e impulsionarem-se para terra firme, não tomaram essa decisão numa sexta-feira e na segunda estavam lá evoluídos como espécie; não se sai da Grécia antiga, passando pelo apogeu romano, com uma breve parada na medievalidade, dando um salto para a revolução industrial e, logo a seguir, colocando o homem na lua e globalizando as relações comerciais num passe de mágica, é impossível resumir esses fatos em dois ou três parágrafos, capítulos, livros, ou bibliotecas; é da história da humanidade em construção que estamos falando.

Nesse contexto, nos inserimos como indivíduos, pedreiros e construtores, quando no amanhecer de cada dia nos dirigimos ao campo de trabalho para nossas tarefas, lá tiramos do papel nossos planos e erguemos edifícios, que ficarão perpetuados para outras gerações; escrevemos em registro novas ideias, para que o progresso da história permaneça em constante evolução; enfim, a história se faz todos os dias, realizamos hoje o imaginado ontem, imaginamos o amanhã enquanto laboramos na véspera.

Algumas atividades são de vital importância, que não podemos deixar para outras gerações suas realizações, por exemplo, cavamos poços artesianos para suprir as necessidades de água, da sede, que invariavelmente temos e deve ser aplacada, destarte, cada qual tem sua tarefa para que o mundo não pare, todos somos responsáveis com nossas ações para que a espécie sobreviva na manhã seguinte e prossiga sua jornada.

Desta forma, quando cavamos um poço, por vezes não estamos buscando suprimento para nossas próprias necessidades, nosso trabalho é no sentido coletivo de todos poderem matar sua sede, embora muitas vezes o trabalho seja tão longo e complexo, que nós mesmos sequer beberemos daquela água que buscamos, ou mesmo a próxima geração, todavia, fazemos a nossa parte, para que um dia alguém tenha água para beber. Não cavamos poços somente para nós, trabalhamos em nome coletivo, na esperança que alguém possa usufruir de nossas obras, assim como hoje usufruímos de um legado deixado por outros obreiros.

Nas conquistas sociais não é diferente o raciocínio, por exemplo, no Brasil, a democracia que temos não é fruto de uma vontade surgida em 1988 e, certamente, não será a mesma nos anos que virão; as garantias trabalhistas também não foram inventadas nas últimas décadas, é fruto de lutas e conquistas, vitórias e derrotas, é resultado de transformações que se operaram na construção da história dos trabalhadores; hoje, algumas comemorações de vitórias se devem ao sacrifício de muito trabalho e vidas, que em algum momento foram necessárias para que hoje possamos beber desse poço que sacia nossa sede de justiça social. Mas a obra nunca está completa, como diz o poeta, “amanhã vai ser outro dia”.

Entretanto, há quem aposte todas as fichas desse jogo em uma só mão de cartas, ignorando todo o processo de construção histórica, acreditando que por possuírem um full hand de mão, não possam ser atropelados por um inimaginável royal street flash do adversário; perdidas todas a fichas em uma só jogada, como participar da próxima rodada, como continuar sentado à mesa de jogo e tentar recuperar o passivo apostado? O preço de um novo cacife para novamente se sentar a mesa pode ser muito alto, representa perdas que levam anos de novas lutas a se recuperar. Voltar ao jogo, perdido por um ato de insensatez, significa se desfazer de um patrimônio de conquistas deixado por aqueles que labutaram no passado, na esperança de nossa continuidade.

A ingenuidade e precipitação da jogada mal feita, também tem um viés psicológico trágico, gera nas pessoas vencidas a sensação de frustração e desencanto, por vezes sentimentos insuperáveis pelo resto da vida, tornando-as, antes empolgadas e audazes, em cabisbaixos e abatidos perdedores que encerram suas vidas resmungonas e infelizes, na busca de apontar algum culpado que justifique sua inabilidade e despreparo.

Ao se entrar na luta por avanços e conquistas, devemos imaginar que o revés é uma das possibilidades de solução do conflito, portanto, cada ação deve ser racionalmente ponderada, o emocional controlado, de modo que não se perca a empolgação, mas também não se deixe guiar pelos impulsos da paixão; todavia, se mesmo assim, ainda que a conquista do almejado não seja atingida, não se pode perder a perspectiva de que se cavou um pouco mais o buraco do poço, e que um dia dali brotará água para matar a sede de outros que virão. É a consciência do dever bem feito que restará, do melhor que se pode fazer diante das condições objetivas que se apresentavam; não há derrotas absolutas, como também a vitória total não se conquista de uma só vez.

Nas lutas, os sonhos não se constroem em uma só rodada, não estão resumidas a uma mão de cartas, as lutas e conquistas são obras que passam por gerações; a água que bebemos nem sempre é fruto do poço que furamos, os poços que cavamos nem sempre matarão nossa cede, mas certamente alguém virá depois de nós e beberá de uma fonte que ajudamos a construir.

08 setembro, 2012

Eu fumo, bebo e jogo



O puritanismo religioso impulsionado na Inglaterra, no século XVI, a partir das ideias pós-reformistas protestante, cujo bastião se encontra nas confissões calvinistas à purificação da Igreja Anglicana, nos deixou alguns legados.

Colonizado com umbilicais ligações puritanas, os Estados Unidos da América, traçou o perfil de seu povo através da via da salvação da alma, estabelecendo um estilo de vida contrario ao mundanismo e vadiagem, afinal, o discurso de Calvino, bem se adequava a construção da nova terra, que necessitava de “rédeas curtas” ao seu desenvolvimento, já adequado desde seu início ao ideal capitalista, conforme nos fala Max Weber em ”A Ética Protestante e o Espírito Capitalista”; conforme o autor, as práticas de salvação da alma, através da racionalização dos comportamentos sociais, estavam relacionadas ao próprio modelo de trabalho desejado, ou seja, uma massa trabalhadora temente a Deus, ordeira e cumpridora de suas obrigações, o que ensejava em última análise em acumulo de riqueza no moderno modelo que se apresentava.

Em nome de Deus, sempre em nome Dele, as religiões vêm manipulando a vida social pela história, de forma a conduzir seus fieis a comportamentos que sejam úteis na construção e manutenção de determinado status quo; se alguém ainda não percebeu isso, não será através de um Blog dominical que a “verdade” será revelada, portanto, dessas linhas vou poupar o pobre leitor, que a essa altura já pergunta, onde quero chegar.

O fato é, partindo dessa premissa, a história das religiões e suas vitórias dentro das sociedades, têm conduzido o ser por um processo de dominação utilitarista, adequando-o a modelos comportamentais mais passivos e obedientes, o que facilita o controle e a dominação. Na docilidade da alma reside o cabresto que freia o comportamento e o impulso individual, tão perigoso para os que pretendem manter o controle produtivo em níveis seguros.

Michel Foucault, em “Microfísica do Poder”, também denuncia esse comportamento de rebanho, forjado pelas pequenas práticas cotidianas, na escola, no trabalho, na saúde, nas cadeias, nos exército, enfim, nas instituições que compõe a sociedade; recomendo a leitura dos clássicos, compreender a sociedade moderna através das lentes desses autores traz luzes a algumas questões, que por vezes nos são propositalmente despercebidas.

Dito isso, volto ao título do post, eu fumo, bebo e jogo, sonora manifestação de pecado e subversão diante de um modelo de comportamento posto, que espera o bomocismo como meta.

Jogo, porque é divertido, é lúdico e me torna competitivo; aguça minha criatividade de superar através do raciocínio, não só as armadilhas que a sorte prega, como também o próprio opositor; joga-se futebol, vôlei, bilhar, baralho, boliche, joga-se tudo, por influências do prazer e outros tantos mais fatores.

Bebo, porque também me dá prazer, e pelas mesmas razões existências que fazem o ser ao longo da história abstrair-se de suas jornadas diárias de sofrimento; não bebo só, bebo com a humanidade, que usa de vários outros expedientes e subterfúgios, para tornar seu fardo mais leve, desconectando-se por algumas horas da complicada tarefa que é viver; bebo, bebemos, porque é prazeroso, divertido e socialmente nos aproxima.

Fumo, porque gosto. Assim como o açúcar, o café, as gorduras, ou qualquer outro alimento desnecessário a nossa existência, todavia, deles fazemos uso por mero prazer. Abro parênteses, sei que mata, fecho, mas todos os prazeres matam de modo geral, cada qual com sua dor e sofrimento, entretanto, nem por isso vemos “patrulheiros” pelos supermercados, apontando dedos incriminadores e banindo consumidores pela porta da frente, como se fossem portadores de moléstias infectantes.

Mas afinal, o que pretende esse malfadado texto?

Vamos aos fatos, ontem resolvi tomar um chopp com torresmo, lá na “Mineira” de Icaraí, a propósito, outro parênteses, que torresmo fantástico tem lá! Pois bem, como bom fumante e educado, resolvi sentar em uma das mesas do lado externo do bar; tudo aberto arejado, bem no meio da calçada, a única coisa que me separava do ambiente público, dos passantes, era uma pequena cerca de aproximado um metro do chão.

Chegando ao pequeno espaço, que comportaria nada além que dois copos e minha porção (que torresmo!), tive a desagradável surpresa de ver devidamente plastificado sobre a mesa um cartaz de proibição do fumo no local.

Indaguei do garçom se aquilo era sério, já que estava em um ambiente completamente arejado e que certamente, a minha maldita “chupetinha do diabo” não faria tanta fumaça quanto às centenas de carros e ônibus que passavam pelo local, despejando monóxido de carbono sem nenhuma proibição ou proteção aos passivos e indefesos respirantes mais próximos.

Era sério a determinação, naquele local passou a ser proibido fumar, mesmo no espaço aberto, e ainda tive que ouvi a seguinte sugestão: que meu vizinho de mesa, também fumante, levantava-se e contornava todo o interior do bar/restaurante ficando junto a mesa (pelo lado de fora); como se a fumaça obedecesse a rígida cerca de um metro de altura e não adentrasse no asséptico estabelecimento, hipocrisia ou burrice, quem sabe os dois.

Levantei e mudei e botequim, para outro de semelhante serviço, porém mais tolerante com meu prazer, todavia, fiquei censurado do delicioso torresmo. Assim é a lei.

Refleti um pouco sobre o que está por trás dessa postura intransigente, que dentro de uma microfísica de dominação se faz presente cada vez mais e passivamente vamos aceitando como natural, em nome do bem estar coletivo.

A equação fechou em minha cabeça com transparente enunciado; ora, ao se proibir o fumo nos bares, por via transversa também está se evitando o uso do álcool, bingo! Mais uma conquista puritana, camuflada pelo discurso da saúde e bem estar geral; mas aqui pra nós, se a coisa toda tivesse realmente propósitos salutares, até mesmo os deliciosos torresmos deveriam ser proibidos; o cerco se fecha através de mínimas e imperceptíveis incisões aparentemente corretas, que até podem lá ter suas razões, mas o que está em jogo é mais um motivo de não frequência aos ambientes propensos ao “pecado”, não é por menos, que os bares estão cada vez mais se transformando em “polos gastronômicos” e perdendo sua essência de botecos.

A onda conservadora (que possui bancadas organizadas nas casas legislativas), vem conquistando espaços nas nossas vidas; não se apresenta mais como na Idade Média, queimando pecadores em praça pública, é sorrateira, se infiltra como água por frestas mal vedadas, em outra alegoria, se apresenta como o abraço da sucuri, que não mata por esmagamento, mas por sufocação, cada vez que sua presa solta o ar, impedindo uma inspiração mais profunda, até que a vítima sufocada esteja pronta para ser devorada.

Fiquei sem torresmo, mas resisti, bebi meu chopp, fumei meu cigarro e tive que me contentar com um tira-gosto “meia bomba”, tudo testemunhado por meia dúzia de crianças barulhentas que gritavam estridentemente numa mesa ao lado, afinal, já não se faz mais botequins como antes, agora frequentamos “polos gastronômicos”, que toleram o álcool como acompanhamento.

26 agosto, 2012

O desencanto do eleitor



Na etimologia da palavra, encantar vem do infinitivo latino incantare; apresenta-se em nossa língua como verbo intransitivo indireto, estando relacionado a magia, enfeitiçamento, ou como queiram, na arte de transformar o outro através de poderes indutivos ou pela habilidade da sedução.

Em posição antagônica, decorrente do prefixo de negação, desencantar seria o ato de perder a ilusão, sair da magia, do boquiaberto maravilhar, tornar-se frustrado pela revelação ardil do prestidigitador; o mago deixa de ser o referencial e faz-se um hipócrita.

Ontem conversava por chat com a Gladys Grillo, amiga daquelas que já “não se faz mais como antigamente”, até porque, depois de mais de trinta anos, ao se falar com amigos de tanto tempo, abdicamos da autocrítica, perdemos a vergonha de falar bobagens e superamos travas sociais, que por regra nos colocam em defensivas posições, quando não, em diálogos objetivantes e estratégicos.

Pois bem, a questão colocada pela Gladys em certo momento foi: “nem sei em quem votar, seria tão bom se eles fossem corretos para nos representar, pagamos tantos impostos merecemos um governo decente”; enfim, a conversa seguiu pelo caminho da desilusão com a política, que por sua vez parece que também perdeu nosso respeito.

Essa não é a primeira e não será a última vez que me deparo com a desilusão na política tradicional, que ocupa espaço em nossa sociedade e tenta, agonizantemente, se legitimar através do personalismo dos candidatos. Já não estranho nem reajo com maior veemência, quando cada vez mais ouço pessoas declarando o desejo de abster-se de indicar um preferido, abrindo mão de conquistas seculares de representatividade social, negando um modelo que se corrompeu no momento que se tornou referência de identidades privadas, longe de ser a expressão do conjunto da sociedade.

A mágica perdeu seu encanto, as pessoas já descobriram que existe um fundo falso onde a mulher serrada ao meio esconde seu corpo; todos já sabem o que boa parcela dos candidatos pretendem: alguns a projeção e o ganho fácil através de seus cargos, outros a representação das forças do mercado, zelosas com a manutenção e ampliação do status quo que tanto lhes favorece; por óbvio, há os que concentram os dois predicativos, a ambição pessoal e a subserviência sistêmica.

O fato é que o eleitor está desencantado em votar; tirando os fieis escudeiros dos partidos políticos, ou interessados em alguma benesse pós-eleitoral, cada vez ficam mais raros os militantes que acreditam estar ajudando a transformar a sociedade com suas participações; cada vez menos adeptos da ética política aristotélica são encontrados, são raros os que ainda acreditam que a política é um desdobramento natural da ética, cujo objetivo precípuo é de assegurar a felicidade coletiva.

Decorre que desse desencanto, propostas e reflexões ficam colocados de lado durante o processo eleitoral, surgem questões que racionalmente deveriam figurar em terceira, quarta ou última colocação como elementos de valoração à escolha, discute-se honradez, integridade e honestidade como os principais valores que devam legitimar a escolha; não que sejam secundários, até porque deveriam ser evidentes e inerentes dos próprios postulantes, portanto, impassível de questionamentos ou perda de tempo.

Sobre essa questão, outro dia mesmo li um texto de outro amigo, o Fernando China, que de forma sintética colocou: “que todo esse cenário começou a ser construído – já anterior contendo uma agenda política de conteúdo que estava sendo destruído desde 1964 – quando da absolutização da bandeira da ética na política, isso na década de 90. De lá pra cá cada vez mais se discute ‘se o cara roubou ou não’, que é a tradução prática como o homem comum enxerga essa bandeira. Penso que necessitamos dedicar apenas 5% para esse tema e 95% para os demais desafios do povo brasileiro”.

Portanto, a questão do desencanto vai além do desinteresse provocado pela descoberta de falcatruas, violações, apropriações e favorecimentos, usualmente praticados e diariamente revelados (até onde sabemos) pela mídia; também creio, que a discussão possa se aprofundar um pouco mais, até porque, me parece que o que está em jogo nesse processo de frustração, ainda que não explicitamente pautado, é o modelo representativo que estamos sujeitos.

Dessa forma, sob outra ótica, podemos notar que o desencantamento coletivo não é somente com os postulantes aos cargos políticos, no final das contas, meros símbolos de uma estrutura, o debate deve ser mais profundo, ou como diria minha avó: “o buraco é mais embaixo”.

Acho improvável que a sociedade se encontre num estágio de transição para um novo modo de organização, diferente do que hoje se constitui alicerçado sob a organização do Estado, ainda há “muita lenha para queimar” no modelo, até porque, qualquer forma de alteração passa pela capacidade de esclarecimento dos seus protagonistas e hoje quem detém esse esclarecimento, de regra são exatamente os quem controlam os cordões.

Sem uma racionalidade crítica como plataforma de diálogo às transformações, estamos no final das contas sujeitos a mera troca de dominadores, ou seja, os “avanços” no campo democrático - entendido como real participação dos membros da comunidade - necessitam que os envolvidos estejam minimamente esclarecidos no processo discursivo, portanto, a participação dos concernidos só ganha legitimidade quando esses possuem as mesmas condições de influenciar no processo, tanto sob o ponto de vista subjetivo, quanto objetivamente falando, nas condições reais dessa participação.

Destarte, enquanto não se caminhar para o esclarecimento, apostando na participação ativa durante todo o jogo político, não só durante os períodos eleitorais, a sensação de frustração permanecerá, continuaremos com expectativas de órfão e abandonados, como quem, a procura de alguém que possa nos conduzir, vestir e alimentar, porém, conscientes que nossos tutores não são lá de toda confiança e que, a qualquer momento do dia ou da noite, possam estar tramando uma maneira de nos violar.

Desta forma, creio que no final das contas, também temos grande parcela de responsabilidade em nossos desencantos com a política, nossas passividades servem de instrumento a referendar o modelo que tanto condenamos, todavia, persistimos em assistir o mesmo espetáculo, ainda que já saibamos o final, mas mesmo assim, ao se fechar as cortinas, domesticados, levantamos para aplaudir a conhecida encenação.

09 agosto, 2012

A fábrica de palitos


I - palitos

Era uma vez, uma fábrica de palitos de dentes, que durante décadas produzia todos os palitos de certa localidade.

Um dia os operários, inconformados com seus salários e condições de trabalho, resolveram parar a produção, reivindicando melhorias de suas condições.

Por mais de seis meses ficaram parados, alguns inclusive arrumaram outras atividades para sustento de suas casas. Durante esse tempo nenhuma pessoa reclamou da falta de palitos, na verdade, a grande maioria, sequer sabia quem os fabricava.

Ocorre que, passados os seis meses, os palitos foram acabando; assim, os restaurantes tiveram que substituí-los por fios e fitas dentais, com repasse da diferença de preço aos seus clientes; as donas de casa, não conseguindo mais espetar seus bifinhos enrolados de panela, passaram a amarravam seus quitutes; as aulas de arte nas escolas primárias tiveram que mudar os trabalhinhos das crianças; cada qual, em suas pequenas necessidades foi se adequando a nova realidade, a falta de palitos de dentes.

Mas uma coisa por final ficou constatada, ninguém precisava de palitos de dentes, de forma tão essencial, que não pudesse prosseguir em suas vidas sem uma alternativa ou mera supressão.

Seis meses depois de iniciada a greve, os operários voltaram a trabalhar, pelos mesmos salários e em iguais condições, agravado pelo fato que ninguém mais sentia necessidade dos seus palitos.

II - água

Ao mesmo tempo, nesse mesmo local, havia uma estação de tratamento de água, que da mesma forma, seus trabalhadores, “inconformados com seus salários e condições de trabalho, resolveram parar a produção, reivindicando melhorias em suas condições”.

Passados já os primeiros três dias, os estoques de água foram se esgotando; hospitais, empresas e até o simples banho diário estavam comprometidos, a tal ponto, que sob pressão dos membros da comunidade, imediatamente os responsáveis pela estação de tratamento resolveram conversar com os trabalhadores, para juntos chegaram a determinados consensos, o que possibilitou o retorno do trabalho de todos em menos de uma semana.

Embora não fosse a condição ideal para todos, entretanto, os resultados alcançados nas negociações atendiam aos interesses dos donos da estação de tratamento e dos seus trabalhadores; por sua vez, a população com os serviços normalizados deram-se por completamente satisfeitos.

III - fim

E assim acabou-se a estória.


Moral da estória

A importância que você tem muitas vezes só é percebida durante a sua falta; de vez em quando você deve lembrar o quanto é essencial  para a sociedade.

05 agosto, 2012

Modernidade, democracia, universalidade e as eleições municipais


Muito se fala em ser moderno, afinal, a expressão transmite uma ideia de se estar à frente do tempo, ou pelo menos ser colocando numa perspectiva de atualidade.

Socialmente, se apresentar como moderno equivale dizer que se está ligado ao novo, não importando para tantos o que essa novidade represente; por outro lado, psicologicamente, o ser humano tende a confundir e crer que “se é novo é melhor”, desta forma, se é melhor é moderno.

Exemplos de novidades que se confundem com modernidade não faltam: a pílula da felicidade (Prozac, Viagra, Sibutramina...); objetos dos sonhos (Mac, Ferrari, Rolex...); a extravagância dos gostos (Prada, Primeira Classe, Cristal Brut...); tudo é novo, porém nem sempre moderno. Mas então, o que é ser moderno afinal?

Para alguns a modernidade é algo que se vive a partir do século XVII, incorporando as pessoas o modo de vida ou organização social europeu daqueles anos; para outros a modernidade está ligada a racionalidade econômica política e cultural, significando um aumento de eficácia desses fatores, em evidente conceito funcional, ou seja, a sociedade moderna seria aquela que funciona melhor que as antigas sociedades tradicionais, que precederam a renascença.

Porém, cremos que a modernidade está ligada a um fator específico, qual seja, a autonomia do indivíduo, ou seja, uma sociedade moderna não é apenas aquela onde seus sistemas funcionam com eficiência tecno-racional, mas sim, quando seus indivíduos possuem maior campo de expressão e autonomia subjetiva.

Desse modo, ser moderno é acreditar que sob o ponto de vista econômico, o indivíduo possa ter acesso ao trabalho, aos bens e serviços que necessite, sem que isso represente explorações ou injustiças, onde uns se sobreponham aos outros em dominação; de modo que a autonomia de uns não signifique a escravidão de seu semelhante; onde o planeta não arque com a conta do consumo desenfreado e a acumulação desnecessária, resultante do esgotamento de seus recursos.

Já sob a ótica política, ser moderno representa o exercício de uma cidadania ativa, num estado democrático de direito e consagrado pelo respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Por fim, ser culturalmente moderno é acreditar no livre uso da razão, crendo que o indivíduo não necessita de tutores que lhes diga o que pode ou não ser imaginado ou criado, tendo direito a produção e acesso a todas as formas de manifestação cultural.

Desta forma, ser moderno é também acreditar que “as barreiras imaginárias que separam os povos” devem ser rompidas; universalizar-se econômica, política e culturalmente é atravessar os limites que inviabilizam uma sociedade cosmopolita, esta capaz de ver no outro a si próprio, comungar de ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, conceitos que valeram a reconfiguração das sociedades contemporâneas; universalizar valores humanos é um conceito que vai além de globalizar os negócios, a produção e as redes de comunicação.

Fazer política num primeiro momento, portanto, é um processo de busca da realização da modernidade, esta não totalmente acabada, conforme os ideais preconizados em sua fundação; destarte, é papel do representante político perseguir o caminho da emancipação do ser, fora dessa perspectiva, o que resta são caprichos pessoais, manifestações privadas e seu distanciamento da representação que lhe é dada.

Em momentos de globalização, onde o tempo e espaço se confundem, onde as diversas expressões se apresentam em visível intensidade, o papel do representante político é de agenciar o direito às diversas manifestações, portanto, de mover-se no sentido de uma política que garanta as mais distintas manifestações e seus espaços de interlocução.

O respeito às identidades, independente de gênero, raça, posição social ou cultural deve ser o norte perseguido, sem que, contudo, essas identidades sirvam como instrumento de afastamento de uma unidade desejável; cabe ao agente político atuar na garantia à coexistência das maiorias com as minorias, vendo no outro, independente de valores religiosos ou morais, uma pluralidade social; esse é o papel do agente político moderno, mediar o diálogo entre os falantes e, através da elaboração das leis expressar um denominador comum entre eles, ou seja, realizar como valor comum os ideais de consenso de determinada comunidade.

“Universalizar não significa abolir diferenças, e sim lidar com as diferenças de modo compatível com valores universalistas” (Rouanet), portanto, identificando cada qual seus valores, porém, fazendo com que esses componham um mosaico plural, assim como é a sociedade.

A política não pode ser voltada somente às maiorias, como também, não pode ser dirigida para atendimento exclusivo das minorias, sob o risco de se jogar em guetos de segmentos sociais determinados comportamentos, ideias e práticas. A política deve ser a expressão do coletivo, dos diversos subjetivismos, que agregados por valores comuns maiores, formam um todo significativo da realidade que existe, o consenso.

O consenso desejável, não surge da concordância estratégica, subimissão ou mera afinidade, é fruto do inicial dissenso, porém, debatido e apreciado sob as luzes dos argumentos racionais; desta forma, o consenso é fruto do dissenso amadurecido, pela troca de expectativas, desejos e interesses, construído através de um diálogo sincero e horizontal entre os membros da sociedade.

Nessa perspectiva mediadora, conforme o modelo brasileiro, em âmbito municipal, não só os cidadãos, mas também e principalmente com poderes instituídos, surge a figura do vereador, votado e escolhido pelos membros da sociedade local, portanto, dotado de legitimidade, torna-se encarregado e representante dos compromissos assumidos com sua comunidade.

A Câmara, fonte originária das leis municipais, deve ser a caixa de retorno das vozes populares, expressando com transparência o cumprimento dos compromissos firmados durante a campanha eleitoral. A vereança não deve só honrar suas propostas, como também, após o processo eleitoral manter aberto os canais de comunicação com os cidadãos; mais que isso, deve ampliar com práticas pró-ativas a capilarização desses caminhos e o debate permanente.

Ser vereador é ouvir mais pelas ruas que ser ouvido na tribuna da Câmara, muitas vezes em discursos enfadonhos ou elogiosos, cínicos e estratégicos; cabe ao representante municipal voltar-se sempre aos apelos da sua comunidade, não importando se essas vozes venham de lugares que porventura não se seja seu reduto eleitoral.

Uma vez eleito, o vereador embora mantenha vínculos com seu eleitorado privado, todavia, torna-se representante de toda a comunidade, desta forma, saúde, educação, moradia, trabalho, assistência social, segurança, ordenamento e ocupação dos espaços públicos e tantos outros temas, deixam de ser propostas para ganhar a rubrica de realização comum e, pelos próximos quatro anos que virão, não pode haver outras preocupações senão estas.

Após eleitos os vereadores passam a ter um compromisso de servir ao povo, com denodo, responsabilidade e transparência; contudo, e acima de tudo, com a disposição de sempre mediar as necessidades, expectativas e interesses da população, entre agentes públicos e/ou privados, além de garantir o espaço de permanente expressão popular na casa legislativa municipal.

Desta forma, a escolha dos representantes à Câmara Municipal ganha significância e significado e se afastam de propostas vazias, que não vão além de slogans que pouco ou nada expressam: “o amigo de sempre”, “o melhor”, “o novo”, “o moderno”, “a mudança”.

A modernidade trouxe um novo conceito de poder, cunhado sobre a plataforma do contrato social, afastando as predeterminações cósmicas e divinas, o que viabiliza o apossamento pelo cidadão dos rumos que pretenda dar ao seu destino, oportunidade inabdicável, penalizada com o abandonar da própria cidadania.

Votar num vereador compromissado com a modernidade possibilita avançar na construção da democracia real; ainda que audaciosa a proposta, se considerada em termos meramente locais, entretanto, os valores ora apresentados se aplicam de forma global e devem ser defendidos em todas as instâncias (município, estados e país); construir uma sociedade universal não é algo que se realize a partir de paradigmas internacionais, mas de microtransformações locais, que difundidas, se alastram e contaminam como vírus as demais esferas de poder.

Globalizar e universalizar a democracia são processos que demandam envolvimento e atividade participativa, não importando o nível de poder que se pretenda discutir; desta forma, a escolha de um vereador se torna tão ou mais importante que a escolha do prefeito, do governador ou do presidente, afinal, o que está em jogo não é o grau do poder, sob um ponto de vista hierárquico, mas sob a ótica da construção da democracia, a participação do cidadão na escolha do seu destino.