Escrevo esta coluna domingo, 23 de agosto, exatos 47 anos passados
do acidente de Ramon Sampedro Cameán, sujeito que conheci num domingo de 1998 enquanto
assistia o “Fantástico, o show da vida” – era assim que o programa se
apresentava.
Ramon apareceu na telinha, com completos 55 anos, literalmente
ancorado num leito, tetraplégico, sem poder mexer mais que os músculos do
pescoço e da face, narrando em tom semisolene o fim da sua vida na terra; foram
as últimas palavras daquele homem, decidido bebeu de um copo uma mistura
venenosa, encerrando sua história.
De então, resolvi penetrar na saga de Ramon, um espanhol da Galícia,
a partir de seu livro, “Cartas Desde el Infierno” – editora planeta –, onde o
autor-protagonista conta como tudo se desenvolveu após seu acidente numa praia,
quando aos 25 anos, num simples mergulho bateu com a cabeça num banco de areia,
fraturando a sétima vértebra cervical, o que lhe colocou numa condição autodescrita
de “cabeza viva y un cuerpo muerto, espíritu parlante de un muerto”.
Ramon, desenganado quanto a qualquer possibilidade de voltar
a viver além do limites de sua cabeça, perseguiu pela via judicial a
autorização para “ser su proprio maestro”, pretendia terminar com seu cárcere carnal
através da eutanásia, todavia, o pleito lhe foi negado em todas as instâncias
do judiciário espanhol; inconformado por não ter a chance de ser tratado como
um animal, “si hubieste sido un animal, habría recebido un trato acorde com los
sentimentos humanos más nobles”, perseguiu seus propósitos libertários apelando
para o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Estrasburgo, que também não lhe
autorizou livrar-se daquilo que considerava sua tortura, sofrimento, dor e perpétua
prisão.
Desde então a história de Ramon Sampedro tem me servido à
reflexão, sobre os limites da liberdade e autogestão de nossas vidas. Pode o
Estado pretender nos proteger a tal ponto, nos retirando a opção de darmos fim aos
nossos destinos, ainda que este seja um castigo? Por outro lado, muitas vezes,
literalmente, sobrevivemos ou insistimos na vida vegetativa de quem amamos às
custas da moderna tecnologia, em outros tempos – 50 anos já são suficientes aos
argumentos –, várias técnicas médicas e aparelhos não existiam, portanto, muitos
daqueles que hoje insistimos vivos não resistiriam em outras épocas.
No mesmo esteio reflexivo, qual o propósito de viver como
ciborgue terminal, insensível e silencioso num leito, moribundo, dificultando a
natureza no cumprimento de seu papel? O que é ser natural no final das contas,
quando medidas e parâmetros da vida foram alterados por fórmulas químicas,
componentes da robótica ou máquinas ressuscitadoras? Qual a idade que Deus nos
deu e desobedecemos de aceitar? Todavia, em oracular moral humanoide, insistimos
em dizer que não temos o direito de abreviar o que artificialmente prorrogamos
desde as primeiras vacinas, ainda no colo de nossas mães. Afinal, quem tem o
direito de decidir, sobre o princípio, o meio e o fim de nossas vidas?
Hoje, 23 de agosto, lembrei de Ramon Sampedro, homem com singular
coragem, justificada em suas próprias palavras, “el individuo es siempre él y
su circunstâncias”, que enfrentou a dor pelo único caminho que enxergava e não
se arrependeu, até o último gole de água misturado com cianureto, afinal, há
escolhas que só nós podemos fazer.
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