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"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

06 maio, 2014

BRUXAS, DEMONOLOGIA, JUSTIÇAMENTOS, SEMPRE A ELEIÇÃO DO INIMIGO


Ouvi perplexo o que fizeram com a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, na cidade de Guarujá, Litoral de São Paulo. Acusada, através de uma página da rede social na Internet, de sequestrar crianças para utilizá-las em rituais de magia negra, Fabiane foi espancada por dezenas de moradores na manhã do dia 5 de maio passado (ontem), lesionada com traumatismo craniano, foi levada ao hospital, todavia, não resistiu aos ferimentos e morreu.
Como já de comum, no final de tudo, ficou o dito pelo não dito, nenhuma verdade havia nas imputações e mais uma pessoa foi assassinada em nome da justiça popular, que de regra vale-se de boatos, fantasias, senso comum e por vezes até de pronunciamentos das autoridades constituídas, com afirmações irresponsáveis sem o devido processo legal para respaldá-las
 Coisa muito parecida com o caso da “Escola de Base” em 1994, que a propósito, em 16 de abril passado teve seu desfecho com a morte do seu proprietário, Icushiro Shimada, ao 70 anos, acometido de um infarto. Icushiro, seus sócios e uma professora foram “eleitos” como abusadores sexuais de crianças que eram suas alunas, isso com a agravante de um delegado de polícia, Edelcio Lemos, apontá-los como autores matérias de delitos, devidamente provado mais adiante que nunca aconteceram.
Poderia tentar depreender o caso da Fabiane através de outros exemplos e reflexões, todavia, muito pouco há que ser acrescentado quando parece que a história se repete, indo e vindo no tempo com manifestações semelhantes, ou nas palavras de Salomão, “não há nada de novo debaixo do sol”.
Já tive oportunidade de discorrer sobre bruxas e demonologia na idade média e sua semelhança com o atual critério de seletividade penal; creio que o texto sirva novamente para este momento de linchamentos populares, afinal, se nada se modifica há tanto tempo, as conclusões me parecem as mesmas, portanto, repito a redação antiga com poucas palavras adaptadas para a ocasião, de modo que pelo menos fique como registro de uma época que se redescobrem as bruxas e as apedrejam em praça pública.

A demonologia e seu substrato, a bruxaria, surgem no início dos tempos modernos, sendo autêntica contradição com a revolução científica, iniciada, dentre outros, por Galileu Galilei, em pleno contexto Renascentista, que, embora tenha sido um período fecundo à valorização e à redescoberta do homem perante o Universo, também traz a marca das superstições como registro.
Segundo JAPIASSU[1], a demonologia e a bruxaria avançam mais nesse momento de chegada a Idade Moderna que propriamente na Idade Média. É no Renascimento que a astrologia é mais destacada que a própria astronomia, que a física, ou a ontologia aristotélica, em nítida evidência que há “supervalorização, as letras e as artes” e menos inspiração científica, ou seja, “foi uma época pouco dotada de espírito crítico e povoada das mais grosseiras superstições, alimentando todos os tipos de crença na magia, na bruxaria, nos demônios e na astrologia.”[2]
E, justamente nesse período, onde predominava a ideia de que “tudo é possível”, terreno fértil para a admissão da presença de bruxos, feiticeiros e demônios atormentadores, que suas manifestações se tornam incontestáveis[3]; diante do caldeirão supersticioso dominante, num mundo ocupado por demônios e bruxas, príncipes e religiosos se ocupam em perseguir seus representantes.
Assim, a igreja, justificando seu papel salvador, fazia a eleição do inimigo comum, manifesto pelos rivais habitantes das trevas. Sob o argumento de que anjos ou demônios, anunciadores do sobrenatural, habitavam entre os vivos e provavam a existência de outros reinos além da vida, travava-se uma batalha entre o bem e o mal.
Se o próprio Cristo, em provação, enfrentou o demônio no deserto, seria perfeitamente concebível que os homens, simples mortais, também fossem tentados pelo maligno. Não havia como negar a presença do mal, sua negação representava a mentira e a encarnação da sua manifestação inclusive; portanto, também passível de perseguição.[4]
As provas eram fartas, fenômenos naturais, doenças, crises sociais, infertilidade feminina, impotência masculina e tudo mais, bem demonstravam que o mal estava presente, portanto, o bem não poderia olvidar forças em combatê-lo, para honra e gloria do Deus, que concedeu a igreja essa missão.
Numa sociedade, marcadamente dominada pelo poder masculino, alicerçada numa ontologia crédula de que as mulheres eram mais vulneráveis à presença do maligno, este, solto e pronto à atormentar a tudo e a todos, com seus propósitos destruidores, obviamente, as solteiras, viúvas e idosas, frágeis entre as frágeis, se tornavam suas principais vítimas[5]. Assim, a igreja, em “reação” ao mal, cumpria seu papel, realizava a “caça às bruxas”, não medindo esforços e práticas, para, finalmente, levá-las às fogueiras purificadoras, bem como convertendo seus patrimônios em mais recursos para a causa salvadora.
Como instrumento dessa perseguição, era utilizado o modelo do Santo Ofício da Inquisição, com a produção de provas através de denúncias sobre denúncias, interrogatórios e confissões através de sujeições e torturas violentíssimas, onde o investigado não passava de mero objeto de apuração por parte do inquisidor, sem possibilidade de defender-se de maneira efetiva; mesmo quando representado por um terceiro aceito pelo tribunal, seus defensores era tolhidos de ampla expressão, sob o risco e ameaça de tornarem-se suas próximas vítimas.
No que se refere à maneira monológica que produzir suas provas, as práticas da Santa Inquisição, podem ser comparadas às dos justiçamentos atuais, quando se vale do “escolhido” como objeto, destituído de direitos fundamentais e impossibilitado de ampla defesa[6]; também, a própria escolha dos inimigos a serem perseguidos pelo Estado e pela própria sociedade: ontem as bruxas e demônios; hoje os criminosos e desajustados guardam comparativas semelhanças, o que denota a seletividade penal.
Porém, logo de início, pode-se indagar: em que se diferem as famosas operações policiais, de ocupações as favelas e comunidades despossuídas de cidadania, insurgentes com o estado de abandono e pobreza a que estão relegadas, das lutas contra as bruxas, e consequente tomada das comunidades camponesas medievais[7]? Ou ainda, qual a diferença dos atuais linchamentos públicos, quando pessoas previamente eleitas são amarradas, açoitadas, agredidas e humilhadas na sua condição humana, se comparados ao escárnio e violência das fogueiras medievais? Nos dois casos, pode-se notar que o inimigo é “escolhido”, preferencialmente, entre aqueles que indiquem causar qualquer forma de ameaça ou alteração do status quo vigente; essas semelhantes escolhas legitimam-se, sob a rubrica maior do livramento da sociedade, em face dos destruidores da harmonia e do bem-comum.
Ainda que se deva admitir que, nas perseguições medievais, sequer houvesse a necessidade de qualquer justificação, senão aquelas de foro íntimo de seus executores, enquanto, na atualidade, essas justificações estejam respaldadas em nome da lei, a Santa Inquisição e os justiçamentos, no final das contas, como se vê, guardam na essência, a mesma identidade, ou seja, ambos, além de produzirem suas “verdades”, a partir de enunciados formulados sob uma ótica unilateral, também se prestam como instrumento de controle e dominação de determinado grupo social sobre outro.
Não há muito mais que eu queira comentar, até porque não há muitos que queiram ler ou compreender como são usados neste macabro processo de eleição dos inimigos. É mais fácil ter um “judas para se malhar”, um objeto para onde se transfiram todas as frustrações e anseios irrealizados que modificar a realidade. Deste modo, só nos resta aguardar a próxima bala perdida, o subsequente erro judicial, o próximo justiçamento ou simplesmente a próxima manchete de jornal.




[1] JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência. São Paulo, Letras e letras, 1991.
[2] Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 19
[3] “A racionalidade científica e mecanicista nascente, tentando explicar que tudo é natural e que mesmo os fatos miraculosos se explicam por uma ação da Natureza, nem por isso consegue deter o avanço inexorável da feitiçaria e da magia satânica.” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 20/21
[4] “Os piores inimigos eram aqueles que negavam a existência ou o poder das bruxas, pois negavam o poder dos inquisidores, que magnificavam a natureza do mal até o ponto de considerar a bruxaria um crime mais grave que o próprio pecado.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. p. 86
[5] “Mas a quem atribuir a responsabilidade pelos crimes horrendos? Não é atribuída aos demônios. A responsabilidade é das próprias bruxas: elas é que são a causa dos males. São culpadas de intenção, de causa e de efeito. E por que existem mais feiticeiras mulheres do que feiticeiros homens? Os dois inquisidores explicam: é porque as mulheres são mais frágeis e muito mais influenciáveis do que os homens, tanto na virtude espiritual quanto na depravação e no mal. Isto se explica pela inferioridade mental da mulher. Contudo, a mais decisiva razão é a sensualidade feminina.” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 25
[6] “Quer dizer, quando uma bruxa é torturada, ou ela confessa logo ou, então, não confessa. Se confessa, é executada. Se não confessa continua torturada. Ou ela confessa, ou morre de tortura. Neste caso, os acusadores dizem que ela morreu por obstinação e impenitência, preferindo permanecer fiel a seus amores culpados. Por amor de Deus, exclama Spee angustiado, como pode ela ser condenada sem ter nenhuma chance de provar que é inocente?” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 31
[7] “A grande caçada às bruxas se torna mais intensa e feroz nos períodos em que ocorrem desastres, epidemias, calamidades e crises sociais profundas. Este é o caso justamente da Europa do final do século XVI e início do XVII: momento de grandes crises sociais, religiosas e políticas. Por isso, cresce o número de acusações de bruxaria. Aliado a isso, o episódio da caça às bruxas era quase sempre associado à repressão violenta aos movimentos de rebeldia dos camponeses. Em boa parte, perseguia-se ao mesmo tempo as revoltas camponesas masculinas e a feitiçaria feminina. Melhor ainda: perseguia-se as bruxas para se perseguir os pobres camponeses” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 35

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