O imaginário coletivo, produzido, instigado ou alimentado pela indústria cultural, não raramente se esboroa diante dos fatos; acontece, que a realidade nem sempre coincide com as figuras míticas forjadas nas telas, telinhas e telões da indústria cinematográfica; não poderia ser diferente no caso da série que consagrou em específico, um grupamento da Polícia Militar do Rio de Janeiro
O “Capitão Nascimento” – que embora não exista de fato – “osso duro de roer”, desenhados com contornos de herói tupiniquim, comandante de uma “tropa de elite”, serviu de inspiração para muitos, naquilo que passou a ser a resistência contra o crime organizado, expresso inicialmente nos favelados e miseráveis traficantes (Tropa I), ou nos organizados milicianos, fardados, engravatados palacianos (Tropa II); herói de fato, aplaudido no uso de “técnicas” recrimináveis, sob o ponto de vista da legalidade e cidadania, entretanto, encontrou sua legitimidade no “interesse maior da sociedade”, velha fórmula desgastada através da história, para justificar todos os abusos cometidos pelo personagem.
Embalado em empolgante trilha sonora e no prestigio popular, atingido após as duas edições de suas estórias romantizadas, onde os personagens foram apresentados como verdadeiros neo-espartanos combatentes, o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o BOPE, passou a ser um ideal policial para a grande massa da sociedade, símbolo de fetiche, fazendo-se detentor de única alternativa ao caos instaurado no sistema de segurança.
Homens viris; forjados nos mais duros treinamentos diários; batizados com o sangue e a pólvora do combate das ruas; fardados na suposta neutralidade política, tal como a cor de seus uniformes; e, simbolizados pela insígnia da faca encravada na caveira, os “homens de preto” que tem como missão, “entrar pela favela e deixar corpos no chão”, passaram a habitar um ideal coletivo de última esperança contra o mal.
Mas entre o filme e o fato, há muito mais distância do que se pode perceber ou se permita deixar ver. Não é novidade a utilização de simbolismos ou personagens épicos que concentre toda força dominadora da natureza ou redentora dos combalidos; de Apolo, guia do sol na sua trajetória diária, até o Capitão América, herói da modernidade patriótica, sempre há o mito, todavia, o que normalmente os contadores de suas estórias deixam de mostrar é o “princípio da necessidade fatal, que traz a desgraça aos heróis míticos e que se desdobra a partir da sentença oracular como conseqüência lógica formal” (ADORNO, Dialética do Esclarecimento). Todo mito tem um preço a pagar.
As recentes notícias que circulam, dando conta do envolvimento do Tenente-Coronel Claudio Luiz Silva de Oliveira, acusado de ser o mentor intelectual da morte da juíza Patrícia Acioli, em decorrência, tendo sido decretada sua prisão cautelar; bem como, conforme também noticia a imprensa, seria o Ten. Cel. líder de uma rede criminosa instaurada atrás dos muros do 7º Batalhão da Polícia Militar,
Em comum com mais esse lastimável episódio, os “homens de preto” se esbarram com o Ten. Cel. investigado, por força de sua qualificação especial; de forma emblemática, o oficial é mais um dos formado nas fileiras do BOPE que apresenta possível “desvio de conduta” (de fato, pela décima terceira vez é investigado por suposto envolvimento desviante); por fim, registre-se, a prática do atual governo do Rio de Janeiro em indicar oficiais com formação nesta Unidade Especial, medida legitimadora dos comandos de batalhões, entretanto, ao mesmo tempo, nomeando subcomandates sem essa formação cinematográfica, o que na prática policial representa que os segundos são os encarregados diretos pela parte operacional. O brilho das estrelas hollywoodianas ainda encanta a assistência emocionada, tal como John Wayne fazia nos filme do velho oeste.
Caminhando para o fim dessa breve exposição, a questão não se trata de desmoralizar ou denegrir a imagem da instituição de forma simplista e simplória, muito menos, generalizar condutas ou apagar méritos que possa haver na sua concepção ou no caráter de seus agentes; o que está em jogo é a desmitificação de heróis forjado em torno de um imaginário, produzido a serviço do poder estabelecido, que, de forma seletiva, indica inimigos a se perseguir, ainda que muitas vezes isso possa significar o uso de métodos criminosos para obtenção de seu resultado. Não, o Estado não pode ser criminoso, igualando-se àqueles que julga combater, sob pena de cair numa contradição performativa, ou seja, tudo aquilo que dizem combater é exatamente aquilo que praticam.
No Estado de Direito a regra da lei é inflexível, ainda que os discursos emocionais, fabricados de forma tendenciosa e oportunista, muitas vezes encubram seus reais objetivos. Com lema bastante sonoro e rimado, o BOPE tem seu refrão, “pega um pega geral, também vai pegar você”, porém, prestigiando-se tal ilusão de “justiça”, acaba-se autorizando comportamentos outros que em dado momento se voltam contra a própria sociedade.
O BOPE não tem culpa pela morte da juíza Patrícia, mas tem culpa por inúmeros outros crimes praticados “em nome da lei”; o possível envolvimento do Ten. Cel. demonstra que a simples esperança mitológica na formação dos “homens de preto”, não justifica a emissão de um “cheque em branco” para qualquer tipo de prática, sob pena de um dia todas as práticas criminosas, que hoje já se exercita contra os “escolhidos” do sistema, se voltem contra toda a sociedade; se hoje a seletividade criminal já não pode ser admitida, ao contrário, deve ser repudiada, a generalização e expansão desse universo nos encaminham à barbárie.
Um comentário:
parabéns
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