Ouvi perplexo o que
fizeram com a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, na cidade de Guarujá,
Litoral de São Paulo. Acusada, através de uma página da rede social na
Internet, de sequestrar crianças para utilizá-las em rituais de magia negra,
Fabiane foi espancada por dezenas de moradores na manhã do dia 5 de maio
passado (ontem), lesionada com traumatismo craniano, foi levada ao hospital,
todavia, não resistiu aos ferimentos e morreu.
Como já de comum, no
final de tudo, ficou o dito pelo não dito, nenhuma verdade havia nas imputações
e mais uma pessoa foi assassinada em nome da justiça popular, que de regra vale-se
de boatos, fantasias, senso comum e por vezes até de pronunciamentos das
autoridades constituídas, com afirmações irresponsáveis sem o devido processo legal
para respaldá-las
Coisa muito parecida com o caso da “Escola de
Base” em 1994, que a propósito, em 16 de abril passado teve seu desfecho com a
morte do seu proprietário, Icushiro Shimada, ao 70 anos, acometido de um
infarto. Icushiro, seus sócios e uma professora foram “eleitos” como abusadores
sexuais de crianças que eram suas alunas, isso com a agravante de um delegado de
polícia, Edelcio Lemos, apontá-los como autores matérias de delitos,
devidamente provado mais adiante que nunca aconteceram.
Poderia tentar
depreender o caso da Fabiane através de outros exemplos e reflexões, todavia,
muito pouco há que ser acrescentado quando parece que a história se repete,
indo e vindo no tempo com manifestações semelhantes, ou nas palavras de
Salomão, “não há nada de novo debaixo do sol”.
Já tive oportunidade de
discorrer sobre bruxas e demonologia na idade média e sua semelhança com o
atual critério de seletividade penal; creio que o texto sirva novamente para
este momento de linchamentos populares, afinal, se nada se modifica há tanto
tempo, as conclusões me parecem as mesmas, portanto, repito a redação antiga
com poucas palavras adaptadas para a ocasião, de modo que pelo menos fique como
registro de uma época que se redescobrem as bruxas e as apedrejam em praça
pública.
A demonologia e seu
substrato, a bruxaria, surgem no início dos tempos modernos, sendo autêntica
contradição com a revolução científica, iniciada, dentre outros, por Galileu
Galilei, em pleno contexto Renascentista, que, embora tenha sido um período
fecundo à valorização e à redescoberta do homem perante o Universo, também traz
a marca das superstições como registro.
Segundo JAPIASSU[1], a
demonologia e a bruxaria avançam mais nesse momento de chegada a Idade Moderna
que propriamente na Idade Média. É no Renascimento que a astrologia é mais
destacada que a própria astronomia, que a física, ou a ontologia aristotélica,
em nítida evidência que há “supervalorização, as letras e as artes” e menos
inspiração científica, ou seja, “foi uma época pouco dotada de espírito crítico
e povoada das mais grosseiras superstições, alimentando todos os tipos de
crença na magia, na bruxaria, nos demônios e na astrologia.”[2]
E, justamente nesse
período, onde predominava a ideia de que “tudo é possível”, terreno fértil para
a admissão da presença de bruxos, feiticeiros e demônios atormentadores, que
suas manifestações se tornam incontestáveis[3]; diante
do caldeirão supersticioso dominante, num mundo ocupado por demônios e bruxas,
príncipes e religiosos se ocupam em perseguir seus representantes.
Assim, a igreja,
justificando seu papel salvador, fazia a eleição do inimigo comum, manifesto
pelos rivais habitantes das trevas. Sob o argumento de que anjos ou demônios,
anunciadores do sobrenatural, habitavam entre os vivos e provavam a existência
de outros reinos além da vida, travava-se uma batalha entre o bem e o mal.
Se o próprio Cristo, em
provação, enfrentou o demônio no deserto, seria perfeitamente concebível que os
homens, simples mortais, também fossem tentados pelo maligno. Não havia como
negar a presença do mal, sua negação representava a mentira e a encarnação da
sua manifestação inclusive; portanto, também passível de perseguição.[4]
As provas eram fartas,
fenômenos naturais, doenças, crises sociais, infertilidade feminina, impotência
masculina e tudo mais, bem demonstravam que o mal estava presente, portanto, o
bem não poderia olvidar forças em combatê-lo, para honra e gloria do Deus, que
concedeu a igreja essa missão.
Numa sociedade,
marcadamente dominada pelo poder masculino, alicerçada numa ontologia crédula
de que as mulheres eram mais vulneráveis à presença do maligno, este, solto e
pronto à atormentar a tudo e a todos, com seus propósitos destruidores,
obviamente, as solteiras, viúvas e idosas, frágeis entre as frágeis, se
tornavam suas principais vítimas[5]. Assim,
a igreja, em “reação” ao mal, cumpria seu papel, realizava a “caça às bruxas”,
não medindo esforços e práticas, para, finalmente, levá-las às fogueiras
purificadoras, bem como convertendo seus patrimônios em mais recursos para a
causa salvadora.
Como instrumento dessa
perseguição, era utilizado o modelo do Santo Ofício da Inquisição, com a
produção de provas através de denúncias sobre denúncias, interrogatórios e
confissões através de sujeições e torturas violentíssimas, onde o investigado
não passava de mero objeto de apuração por parte do inquisidor, sem
possibilidade de defender-se de maneira efetiva; mesmo quando representado por
um terceiro aceito pelo tribunal, seus defensores era tolhidos de ampla
expressão, sob o risco e ameaça de tornarem-se suas próximas vítimas.
No que se refere à
maneira monológica que produzir suas provas, as práticas da Santa Inquisição,
podem ser comparadas às dos justiçamentos atuais, quando se vale do “escolhido”
como objeto, destituído de direitos fundamentais e impossibilitado de ampla
defesa[6]; também,
a própria escolha dos inimigos a serem perseguidos pelo Estado e pela própria
sociedade: ontem as bruxas e demônios; hoje os criminosos e desajustados
guardam comparativas semelhanças, o que denota a seletividade penal.
Porém, logo de início,
pode-se indagar: em que se diferem as famosas operações policiais, de ocupações
as favelas e comunidades despossuídas de cidadania, insurgentes com o estado de
abandono e pobreza a que estão relegadas, das lutas contra as bruxas, e
consequente tomada das comunidades camponesas medievais[7]? Ou
ainda, qual a diferença dos atuais linchamentos públicos, quando pessoas
previamente eleitas são amarradas, açoitadas, agredidas e humilhadas na sua
condição humana, se comparados ao escárnio e violência das fogueiras medievais?
Nos dois casos, pode-se notar que o inimigo é “escolhido”, preferencialmente,
entre aqueles que indiquem causar qualquer forma de ameaça ou alteração do status quo vigente; essas semelhantes
escolhas legitimam-se, sob a rubrica maior do livramento da sociedade, em face
dos destruidores da harmonia e do bem-comum.
Ainda que se deva
admitir que, nas perseguições medievais, sequer houvesse a necessidade de
qualquer justificação, senão aquelas de foro íntimo de seus executores,
enquanto, na atualidade, essas justificações estejam respaldadas em nome da
lei, a Santa Inquisição e os justiçamentos, no final das contas, como se vê,
guardam na essência, a mesma identidade, ou seja, ambos, além de produzirem
suas “verdades”, a partir de enunciados formulados sob uma ótica unilateral,
também se prestam como instrumento de controle e dominação de determinado grupo
social sobre outro.
Não há muito mais que eu
queira comentar, até porque não há muitos que queiram ler ou compreender como
são usados neste macabro processo de eleição dos inimigos. É mais fácil ter um
“judas para se malhar”, um objeto para onde se transfiram todas as frustrações
e anseios irrealizados que modificar a realidade. Deste modo, só nos resta
aguardar a próxima bala perdida, o subsequente erro judicial, o próximo
justiçamento ou simplesmente a próxima manchete de jornal.
[1] JAPIASSU, Hilton. As paixões da ciência. São Paulo, Letras e letras, 1991.
[2] Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 19
[3] “A racionalidade científica e
mecanicista nascente, tentando explicar que tudo é natural e que mesmo os fatos
miraculosos se explicam por uma ação da Natureza, nem por isso consegue deter o
avanço inexorável da feitiçaria e da magia satânica.” Idem, JAPIASSU, Hilton,
p. 20/21
[4] “Os piores inimigos eram aqueles que
negavam a existência ou o poder das bruxas, pois negavam o poder dos
inquisidores, que magnificavam a natureza do mal até o ponto de considerar a
bruxaria um crime mais grave que o próprio pecado.” Idem, ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. p. 86
[5] “Mas a quem atribuir a responsabilidade
pelos crimes horrendos? Não é atribuída aos demônios. A responsabilidade é das
próprias bruxas: elas é que são a causa dos males. São culpadas de intenção, de
causa e de efeito. E por que existem mais feiticeiras mulheres do que
feiticeiros homens? Os dois inquisidores explicam: é porque as mulheres são
mais frágeis e muito mais influenciáveis do que os homens, tanto na virtude
espiritual quanto na depravação e no mal. Isto se explica pela inferioridade
mental da mulher. Contudo, a mais decisiva razão é a sensualidade feminina.” Idem,
JAPIASSU, Hilton, p. 25
[6] “Quer dizer, quando uma bruxa é
torturada, ou ela confessa logo ou, então, não confessa. Se confessa, é
executada. Se não confessa continua torturada. Ou ela confessa, ou morre de
tortura. Neste caso, os acusadores dizem que ela morreu por obstinação e
impenitência, preferindo permanecer fiel a seus amores culpados. Por amor de
Deus, exclama Spee angustiado, como pode ela ser condenada sem ter nenhuma
chance de provar que é inocente?” Idem, JAPIASSU, Hilton, p. 31
[7] “A grande caçada às bruxas se torna mais
intensa e feroz nos períodos em que ocorrem desastres, epidemias, calamidades e
crises sociais profundas. Este é o caso justamente da Europa do final do século
XVI e início do XVII: momento de grandes crises sociais, religiosas e
políticas. Por isso, cresce o número de acusações de bruxaria. Aliado a isso, o
episódio da caça às bruxas era quase sempre associado à repressão violenta aos
movimentos de rebeldia dos camponeses. Em boa parte, perseguia-se ao mesmo
tempo as revoltas camponesas masculinas e a feitiçaria feminina. Melhor ainda:
perseguia-se as bruxas para se perseguir os pobres camponeses” Idem, JAPIASSU,
Hilton, p. 35
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