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"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

22 setembro, 2012

A água que não beberei



Algumas pessoas costumam projetar suas ambições, expectativas, desejos e interesses para um momento bem próximo, o logo a seguir; é claro que questões mais simples, onde o que está em jogo são vontades singulares, desprovidas de maior complexidade, bem se resolvem com poucos movimentos e resistência, porém, aquelas mais complexas, formadas por variantes e forças antagônicas, onde há também “do outro lado” ambições, expectativas, desejos e interesses, essas se fazem mais difíceis de solução em curto prazo.

É comum se ignorar que o processo histórico se dê através de uma linha ainda não escrita, que será contada pelo próprio protagonista, portanto, não há caminhos de certezas, ou movimentos que garantam que saindo de um ponto “A”, em linha reta, invariavelmente, se chegará a um ponto “B”, não há lógica na física ou matemática, que apresente equações tão precisas para o comportamento social; as variantes são infinitas, um gesto bem ou mal dito pode desandar toda a receita, um dia de chuva ou sol, pode mobilizar ou desmobilizar toda uma prévia estratégia, enfim, qualquer coisa é fato a ser considerado, onde a única garantia que temos é que os objetivos poderão ou não ser alcançados.

A propósito, sempre é bom lembrar, que a história não se realiza por saltos, sua construção é diária; não fizemos aproximados seis bilhões de anos caminhar em sete dias, como se fossemos um criador celestial; nossos ancestrais répteis, para alongar suas caudas e impulsionarem-se para terra firme, não tomaram essa decisão numa sexta-feira e na segunda estavam lá evoluídos como espécie; não se sai da Grécia antiga, passando pelo apogeu romano, com uma breve parada na medievalidade, dando um salto para a revolução industrial e, logo a seguir, colocando o homem na lua e globalizando as relações comerciais num passe de mágica, é impossível resumir esses fatos em dois ou três parágrafos, capítulos, livros, ou bibliotecas; é da história da humanidade em construção que estamos falando.

Nesse contexto, nos inserimos como indivíduos, pedreiros e construtores, quando no amanhecer de cada dia nos dirigimos ao campo de trabalho para nossas tarefas, lá tiramos do papel nossos planos e erguemos edifícios, que ficarão perpetuados para outras gerações; escrevemos em registro novas ideias, para que o progresso da história permaneça em constante evolução; enfim, a história se faz todos os dias, realizamos hoje o imaginado ontem, imaginamos o amanhã enquanto laboramos na véspera.

Algumas atividades são de vital importância, que não podemos deixar para outras gerações suas realizações, por exemplo, cavamos poços artesianos para suprir as necessidades de água, da sede, que invariavelmente temos e deve ser aplacada, destarte, cada qual tem sua tarefa para que o mundo não pare, todos somos responsáveis com nossas ações para que a espécie sobreviva na manhã seguinte e prossiga sua jornada.

Desta forma, quando cavamos um poço, por vezes não estamos buscando suprimento para nossas próprias necessidades, nosso trabalho é no sentido coletivo de todos poderem matar sua sede, embora muitas vezes o trabalho seja tão longo e complexo, que nós mesmos sequer beberemos daquela água que buscamos, ou mesmo a próxima geração, todavia, fazemos a nossa parte, para que um dia alguém tenha água para beber. Não cavamos poços somente para nós, trabalhamos em nome coletivo, na esperança que alguém possa usufruir de nossas obras, assim como hoje usufruímos de um legado deixado por outros obreiros.

Nas conquistas sociais não é diferente o raciocínio, por exemplo, no Brasil, a democracia que temos não é fruto de uma vontade surgida em 1988 e, certamente, não será a mesma nos anos que virão; as garantias trabalhistas também não foram inventadas nas últimas décadas, é fruto de lutas e conquistas, vitórias e derrotas, é resultado de transformações que se operaram na construção da história dos trabalhadores; hoje, algumas comemorações de vitórias se devem ao sacrifício de muito trabalho e vidas, que em algum momento foram necessárias para que hoje possamos beber desse poço que sacia nossa sede de justiça social. Mas a obra nunca está completa, como diz o poeta, “amanhã vai ser outro dia”.

Entretanto, há quem aposte todas as fichas desse jogo em uma só mão de cartas, ignorando todo o processo de construção histórica, acreditando que por possuírem um full hand de mão, não possam ser atropelados por um inimaginável royal street flash do adversário; perdidas todas a fichas em uma só jogada, como participar da próxima rodada, como continuar sentado à mesa de jogo e tentar recuperar o passivo apostado? O preço de um novo cacife para novamente se sentar a mesa pode ser muito alto, representa perdas que levam anos de novas lutas a se recuperar. Voltar ao jogo, perdido por um ato de insensatez, significa se desfazer de um patrimônio de conquistas deixado por aqueles que labutaram no passado, na esperança de nossa continuidade.

A ingenuidade e precipitação da jogada mal feita, também tem um viés psicológico trágico, gera nas pessoas vencidas a sensação de frustração e desencanto, por vezes sentimentos insuperáveis pelo resto da vida, tornando-as, antes empolgadas e audazes, em cabisbaixos e abatidos perdedores que encerram suas vidas resmungonas e infelizes, na busca de apontar algum culpado que justifique sua inabilidade e despreparo.

Ao se entrar na luta por avanços e conquistas, devemos imaginar que o revés é uma das possibilidades de solução do conflito, portanto, cada ação deve ser racionalmente ponderada, o emocional controlado, de modo que não se perca a empolgação, mas também não se deixe guiar pelos impulsos da paixão; todavia, se mesmo assim, ainda que a conquista do almejado não seja atingida, não se pode perder a perspectiva de que se cavou um pouco mais o buraco do poço, e que um dia dali brotará água para matar a sede de outros que virão. É a consciência do dever bem feito que restará, do melhor que se pode fazer diante das condições objetivas que se apresentavam; não há derrotas absolutas, como também a vitória total não se conquista de uma só vez.

Nas lutas, os sonhos não se constroem em uma só rodada, não estão resumidas a uma mão de cartas, as lutas e conquistas são obras que passam por gerações; a água que bebemos nem sempre é fruto do poço que furamos, os poços que cavamos nem sempre matarão nossa cede, mas certamente alguém virá depois de nós e beberá de uma fonte que ajudamos a construir.

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