Na etimologia da palavra,
encantar vem do infinitivo latino incantare;
apresenta-se em nossa língua como verbo intransitivo indireto, estando
relacionado a magia, enfeitiçamento, ou como queiram, na arte de transformar o
outro através de poderes indutivos ou pela habilidade da sedução.
Em posição antagônica, decorrente
do prefixo de negação, desencantar seria o ato de perder a ilusão, sair da
magia, do boquiaberto maravilhar, tornar-se frustrado pela revelação ardil do
prestidigitador; o mago deixa de ser o referencial e faz-se um hipócrita.
Ontem conversava por chat com a
Gladys Grillo, amiga daquelas que já “não se faz mais como antigamente”, até
porque, depois de mais de trinta anos, ao se falar com amigos de tanto tempo,
abdicamos da autocrítica, perdemos a vergonha de falar bobagens e superamos
travas sociais, que por regra nos colocam em defensivas posições, quando não,
em diálogos objetivantes e estratégicos.
Pois bem, a questão colocada pela
Gladys em certo momento foi: “nem sei em quem votar, seria tão bom se eles
fossem corretos para nos representar, pagamos tantos impostos merecemos um
governo decente”; enfim, a conversa seguiu pelo caminho da desilusão com a política,
que por sua vez parece que também perdeu nosso respeito.
Essa não é a primeira e não será a
última vez que me deparo com a desilusão na política tradicional, que ocupa
espaço em nossa sociedade e tenta, agonizantemente, se legitimar através do
personalismo dos candidatos. Já não estranho nem reajo com maior veemência, quando
cada vez mais ouço pessoas declarando o desejo de abster-se de indicar um preferido, abrindo mão de conquistas
seculares de representatividade social, negando um modelo que se corrompeu no momento
que se tornou referência de identidades privadas, longe de ser a expressão do conjunto
da sociedade.
A mágica perdeu seu encanto, as
pessoas já descobriram que existe um fundo falso onde a mulher serrada ao meio
esconde seu corpo; todos já sabem o que boa parcela dos candidatos pretendem:
alguns a projeção e o ganho fácil através de seus cargos, outros a representação
das forças do mercado, zelosas com a manutenção e ampliação do status quo que tanto lhes favorece; por óbvio,
há os que concentram os dois predicativos, a ambição pessoal e a subserviência
sistêmica.
O fato é que o eleitor está
desencantado em votar; tirando os fieis escudeiros dos partidos políticos, ou interessados
em alguma benesse pós-eleitoral, cada vez ficam mais raros os militantes que
acreditam estar ajudando a transformar a sociedade com suas participações; cada
vez menos adeptos da ética política aristotélica são encontrados, são raros os
que ainda acreditam que a política é um desdobramento natural da ética, cujo
objetivo precípuo é de assegurar a felicidade coletiva.
Decorre que desse desencanto, propostas
e reflexões ficam colocados de lado durante o processo eleitoral, surgem
questões que racionalmente deveriam figurar em terceira, quarta ou última colocação
como elementos de valoração à escolha, discute-se honradez, integridade e
honestidade como os principais valores que devam legitimar a escolha; não que sejam
secundários, até porque deveriam ser evidentes e inerentes dos próprios
postulantes, portanto, impassível de questionamentos ou perda de tempo.
Sobre essa questão, outro dia
mesmo li um texto de outro amigo, o Fernando China, que de forma sintética colocou:
“que todo esse cenário começou a ser construído – já anterior contendo uma
agenda política de conteúdo que estava sendo destruído desde 1964 – quando da
absolutização da bandeira da ética na política, isso na década de 90. De lá pra
cá cada vez mais se discute ‘se o cara roubou ou não’, que é a tradução prática
como o homem comum enxerga essa bandeira. Penso que necessitamos dedicar apenas
5% para esse tema e 95% para os demais desafios do povo brasileiro”.
Portanto, a questão do desencanto
vai além do desinteresse provocado pela descoberta de falcatruas, violações,
apropriações e favorecimentos, usualmente praticados e diariamente revelados
(até onde sabemos) pela mídia; também creio, que a discussão possa se
aprofundar um pouco mais, até porque, me parece que o que está em jogo nesse processo
de frustração, ainda que não explicitamente pautado, é o modelo representativo que estamos sujeitos.
Dessa forma, sob outra ótica, podemos
notar que o desencantamento coletivo não é somente com os postulantes aos cargos
políticos, no final das contas, meros símbolos de uma estrutura, o debate deve
ser mais profundo, ou como diria minha avó: “o buraco é mais embaixo”.
Acho improvável que a sociedade
se encontre num estágio de transição para um novo modo de organização,
diferente do que hoje se constitui alicerçado sob a organização do Estado,
ainda há “muita lenha para queimar” no modelo, até porque, qualquer forma de
alteração passa pela capacidade de esclarecimento dos seus protagonistas e hoje
quem detém esse esclarecimento, de regra são exatamente os quem controlam os cordões.
Sem uma racionalidade crítica
como plataforma de diálogo às transformações, estamos no final das contas sujeitos
a mera troca de dominadores, ou seja, os “avanços” no campo democrático -
entendido como real participação dos membros da comunidade - necessitam que os
envolvidos estejam minimamente esclarecidos no processo discursivo, portanto, a
participação dos concernidos só ganha legitimidade quando esses possuem as
mesmas condições de influenciar no processo, tanto sob o ponto de vista
subjetivo, quanto objetivamente falando, nas condições reais dessa participação.
Destarte, enquanto não se
caminhar para o esclarecimento, apostando na participação ativa durante todo o
jogo político, não só durante os períodos eleitorais, a sensação de frustração
permanecerá, continuaremos com expectativas de órfão e abandonados, como quem, a
procura de alguém que possa nos conduzir, vestir e alimentar, porém,
conscientes que nossos tutores não são lá de toda confiança e que, a qualquer
momento do dia ou da noite, possam estar tramando uma maneira de nos violar.
Desta forma, creio que no final
das contas, também temos grande parcela de responsabilidade em nossos
desencantos com a política, nossas passividades servem de instrumento a referendar
o modelo que tanto condenamos, todavia, persistimos em assistir o mesmo espetáculo,
ainda que já saibamos o final, mas mesmo assim, ao se fechar as cortinas,
domesticados, levantamos para aplaudir a conhecida encenação.
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