Minhas opiniões e publicações, expostas neste espaço, são reflexões acadêmicas de um cidadão-eleitor, publicadas ao abrigo do direito constitucional da liberdade de expressão

"Por favor, leia devagar." (Ferreira Gullar)

26 agosto, 2012

O desencanto do eleitor



Na etimologia da palavra, encantar vem do infinitivo latino incantare; apresenta-se em nossa língua como verbo intransitivo indireto, estando relacionado a magia, enfeitiçamento, ou como queiram, na arte de transformar o outro através de poderes indutivos ou pela habilidade da sedução.

Em posição antagônica, decorrente do prefixo de negação, desencantar seria o ato de perder a ilusão, sair da magia, do boquiaberto maravilhar, tornar-se frustrado pela revelação ardil do prestidigitador; o mago deixa de ser o referencial e faz-se um hipócrita.

Ontem conversava por chat com a Gladys Grillo, amiga daquelas que já “não se faz mais como antigamente”, até porque, depois de mais de trinta anos, ao se falar com amigos de tanto tempo, abdicamos da autocrítica, perdemos a vergonha de falar bobagens e superamos travas sociais, que por regra nos colocam em defensivas posições, quando não, em diálogos objetivantes e estratégicos.

Pois bem, a questão colocada pela Gladys em certo momento foi: “nem sei em quem votar, seria tão bom se eles fossem corretos para nos representar, pagamos tantos impostos merecemos um governo decente”; enfim, a conversa seguiu pelo caminho da desilusão com a política, que por sua vez parece que também perdeu nosso respeito.

Essa não é a primeira e não será a última vez que me deparo com a desilusão na política tradicional, que ocupa espaço em nossa sociedade e tenta, agonizantemente, se legitimar através do personalismo dos candidatos. Já não estranho nem reajo com maior veemência, quando cada vez mais ouço pessoas declarando o desejo de abster-se de indicar um preferido, abrindo mão de conquistas seculares de representatividade social, negando um modelo que se corrompeu no momento que se tornou referência de identidades privadas, longe de ser a expressão do conjunto da sociedade.

A mágica perdeu seu encanto, as pessoas já descobriram que existe um fundo falso onde a mulher serrada ao meio esconde seu corpo; todos já sabem o que boa parcela dos candidatos pretendem: alguns a projeção e o ganho fácil através de seus cargos, outros a representação das forças do mercado, zelosas com a manutenção e ampliação do status quo que tanto lhes favorece; por óbvio, há os que concentram os dois predicativos, a ambição pessoal e a subserviência sistêmica.

O fato é que o eleitor está desencantado em votar; tirando os fieis escudeiros dos partidos políticos, ou interessados em alguma benesse pós-eleitoral, cada vez ficam mais raros os militantes que acreditam estar ajudando a transformar a sociedade com suas participações; cada vez menos adeptos da ética política aristotélica são encontrados, são raros os que ainda acreditam que a política é um desdobramento natural da ética, cujo objetivo precípuo é de assegurar a felicidade coletiva.

Decorre que desse desencanto, propostas e reflexões ficam colocados de lado durante o processo eleitoral, surgem questões que racionalmente deveriam figurar em terceira, quarta ou última colocação como elementos de valoração à escolha, discute-se honradez, integridade e honestidade como os principais valores que devam legitimar a escolha; não que sejam secundários, até porque deveriam ser evidentes e inerentes dos próprios postulantes, portanto, impassível de questionamentos ou perda de tempo.

Sobre essa questão, outro dia mesmo li um texto de outro amigo, o Fernando China, que de forma sintética colocou: “que todo esse cenário começou a ser construído – já anterior contendo uma agenda política de conteúdo que estava sendo destruído desde 1964 – quando da absolutização da bandeira da ética na política, isso na década de 90. De lá pra cá cada vez mais se discute ‘se o cara roubou ou não’, que é a tradução prática como o homem comum enxerga essa bandeira. Penso que necessitamos dedicar apenas 5% para esse tema e 95% para os demais desafios do povo brasileiro”.

Portanto, a questão do desencanto vai além do desinteresse provocado pela descoberta de falcatruas, violações, apropriações e favorecimentos, usualmente praticados e diariamente revelados (até onde sabemos) pela mídia; também creio, que a discussão possa se aprofundar um pouco mais, até porque, me parece que o que está em jogo nesse processo de frustração, ainda que não explicitamente pautado, é o modelo representativo que estamos sujeitos.

Dessa forma, sob outra ótica, podemos notar que o desencantamento coletivo não é somente com os postulantes aos cargos políticos, no final das contas, meros símbolos de uma estrutura, o debate deve ser mais profundo, ou como diria minha avó: “o buraco é mais embaixo”.

Acho improvável que a sociedade se encontre num estágio de transição para um novo modo de organização, diferente do que hoje se constitui alicerçado sob a organização do Estado, ainda há “muita lenha para queimar” no modelo, até porque, qualquer forma de alteração passa pela capacidade de esclarecimento dos seus protagonistas e hoje quem detém esse esclarecimento, de regra são exatamente os quem controlam os cordões.

Sem uma racionalidade crítica como plataforma de diálogo às transformações, estamos no final das contas sujeitos a mera troca de dominadores, ou seja, os “avanços” no campo democrático - entendido como real participação dos membros da comunidade - necessitam que os envolvidos estejam minimamente esclarecidos no processo discursivo, portanto, a participação dos concernidos só ganha legitimidade quando esses possuem as mesmas condições de influenciar no processo, tanto sob o ponto de vista subjetivo, quanto objetivamente falando, nas condições reais dessa participação.

Destarte, enquanto não se caminhar para o esclarecimento, apostando na participação ativa durante todo o jogo político, não só durante os períodos eleitorais, a sensação de frustração permanecerá, continuaremos com expectativas de órfão e abandonados, como quem, a procura de alguém que possa nos conduzir, vestir e alimentar, porém, conscientes que nossos tutores não são lá de toda confiança e que, a qualquer momento do dia ou da noite, possam estar tramando uma maneira de nos violar.

Desta forma, creio que no final das contas, também temos grande parcela de responsabilidade em nossos desencantos com a política, nossas passividades servem de instrumento a referendar o modelo que tanto condenamos, todavia, persistimos em assistir o mesmo espetáculo, ainda que já saibamos o final, mas mesmo assim, ao se fechar as cortinas, domesticados, levantamos para aplaudir a conhecida encenação.

09 agosto, 2012

A fábrica de palitos


I - palitos

Era uma vez, uma fábrica de palitos de dentes, que durante décadas produzia todos os palitos de certa localidade.

Um dia os operários, inconformados com seus salários e condições de trabalho, resolveram parar a produção, reivindicando melhorias de suas condições.

Por mais de seis meses ficaram parados, alguns inclusive arrumaram outras atividades para sustento de suas casas. Durante esse tempo nenhuma pessoa reclamou da falta de palitos, na verdade, a grande maioria, sequer sabia quem os fabricava.

Ocorre que, passados os seis meses, os palitos foram acabando; assim, os restaurantes tiveram que substituí-los por fios e fitas dentais, com repasse da diferença de preço aos seus clientes; as donas de casa, não conseguindo mais espetar seus bifinhos enrolados de panela, passaram a amarravam seus quitutes; as aulas de arte nas escolas primárias tiveram que mudar os trabalhinhos das crianças; cada qual, em suas pequenas necessidades foi se adequando a nova realidade, a falta de palitos de dentes.

Mas uma coisa por final ficou constatada, ninguém precisava de palitos de dentes, de forma tão essencial, que não pudesse prosseguir em suas vidas sem uma alternativa ou mera supressão.

Seis meses depois de iniciada a greve, os operários voltaram a trabalhar, pelos mesmos salários e em iguais condições, agravado pelo fato que ninguém mais sentia necessidade dos seus palitos.

II - água

Ao mesmo tempo, nesse mesmo local, havia uma estação de tratamento de água, que da mesma forma, seus trabalhadores, “inconformados com seus salários e condições de trabalho, resolveram parar a produção, reivindicando melhorias em suas condições”.

Passados já os primeiros três dias, os estoques de água foram se esgotando; hospitais, empresas e até o simples banho diário estavam comprometidos, a tal ponto, que sob pressão dos membros da comunidade, imediatamente os responsáveis pela estação de tratamento resolveram conversar com os trabalhadores, para juntos chegaram a determinados consensos, o que possibilitou o retorno do trabalho de todos em menos de uma semana.

Embora não fosse a condição ideal para todos, entretanto, os resultados alcançados nas negociações atendiam aos interesses dos donos da estação de tratamento e dos seus trabalhadores; por sua vez, a população com os serviços normalizados deram-se por completamente satisfeitos.

III - fim

E assim acabou-se a estória.


Moral da estória

A importância que você tem muitas vezes só é percebida durante a sua falta; de vez em quando você deve lembrar o quanto é essencial  para a sociedade.

05 agosto, 2012

Modernidade, democracia, universalidade e as eleições municipais


Muito se fala em ser moderno, afinal, a expressão transmite uma ideia de se estar à frente do tempo, ou pelo menos ser colocando numa perspectiva de atualidade.

Socialmente, se apresentar como moderno equivale dizer que se está ligado ao novo, não importando para tantos o que essa novidade represente; por outro lado, psicologicamente, o ser humano tende a confundir e crer que “se é novo é melhor”, desta forma, se é melhor é moderno.

Exemplos de novidades que se confundem com modernidade não faltam: a pílula da felicidade (Prozac, Viagra, Sibutramina...); objetos dos sonhos (Mac, Ferrari, Rolex...); a extravagância dos gostos (Prada, Primeira Classe, Cristal Brut...); tudo é novo, porém nem sempre moderno. Mas então, o que é ser moderno afinal?

Para alguns a modernidade é algo que se vive a partir do século XVII, incorporando as pessoas o modo de vida ou organização social europeu daqueles anos; para outros a modernidade está ligada a racionalidade econômica política e cultural, significando um aumento de eficácia desses fatores, em evidente conceito funcional, ou seja, a sociedade moderna seria aquela que funciona melhor que as antigas sociedades tradicionais, que precederam a renascença.

Porém, cremos que a modernidade está ligada a um fator específico, qual seja, a autonomia do indivíduo, ou seja, uma sociedade moderna não é apenas aquela onde seus sistemas funcionam com eficiência tecno-racional, mas sim, quando seus indivíduos possuem maior campo de expressão e autonomia subjetiva.

Desse modo, ser moderno é acreditar que sob o ponto de vista econômico, o indivíduo possa ter acesso ao trabalho, aos bens e serviços que necessite, sem que isso represente explorações ou injustiças, onde uns se sobreponham aos outros em dominação; de modo que a autonomia de uns não signifique a escravidão de seu semelhante; onde o planeta não arque com a conta do consumo desenfreado e a acumulação desnecessária, resultante do esgotamento de seus recursos.

Já sob a ótica política, ser moderno representa o exercício de uma cidadania ativa, num estado democrático de direito e consagrado pelo respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Por fim, ser culturalmente moderno é acreditar no livre uso da razão, crendo que o indivíduo não necessita de tutores que lhes diga o que pode ou não ser imaginado ou criado, tendo direito a produção e acesso a todas as formas de manifestação cultural.

Desta forma, ser moderno é também acreditar que “as barreiras imaginárias que separam os povos” devem ser rompidas; universalizar-se econômica, política e culturalmente é atravessar os limites que inviabilizam uma sociedade cosmopolita, esta capaz de ver no outro a si próprio, comungar de ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, conceitos que valeram a reconfiguração das sociedades contemporâneas; universalizar valores humanos é um conceito que vai além de globalizar os negócios, a produção e as redes de comunicação.

Fazer política num primeiro momento, portanto, é um processo de busca da realização da modernidade, esta não totalmente acabada, conforme os ideais preconizados em sua fundação; destarte, é papel do representante político perseguir o caminho da emancipação do ser, fora dessa perspectiva, o que resta são caprichos pessoais, manifestações privadas e seu distanciamento da representação que lhe é dada.

Em momentos de globalização, onde o tempo e espaço se confundem, onde as diversas expressões se apresentam em visível intensidade, o papel do representante político é de agenciar o direito às diversas manifestações, portanto, de mover-se no sentido de uma política que garanta as mais distintas manifestações e seus espaços de interlocução.

O respeito às identidades, independente de gênero, raça, posição social ou cultural deve ser o norte perseguido, sem que, contudo, essas identidades sirvam como instrumento de afastamento de uma unidade desejável; cabe ao agente político atuar na garantia à coexistência das maiorias com as minorias, vendo no outro, independente de valores religiosos ou morais, uma pluralidade social; esse é o papel do agente político moderno, mediar o diálogo entre os falantes e, através da elaboração das leis expressar um denominador comum entre eles, ou seja, realizar como valor comum os ideais de consenso de determinada comunidade.

“Universalizar não significa abolir diferenças, e sim lidar com as diferenças de modo compatível com valores universalistas” (Rouanet), portanto, identificando cada qual seus valores, porém, fazendo com que esses componham um mosaico plural, assim como é a sociedade.

A política não pode ser voltada somente às maiorias, como também, não pode ser dirigida para atendimento exclusivo das minorias, sob o risco de se jogar em guetos de segmentos sociais determinados comportamentos, ideias e práticas. A política deve ser a expressão do coletivo, dos diversos subjetivismos, que agregados por valores comuns maiores, formam um todo significativo da realidade que existe, o consenso.

O consenso desejável, não surge da concordância estratégica, subimissão ou mera afinidade, é fruto do inicial dissenso, porém, debatido e apreciado sob as luzes dos argumentos racionais; desta forma, o consenso é fruto do dissenso amadurecido, pela troca de expectativas, desejos e interesses, construído através de um diálogo sincero e horizontal entre os membros da sociedade.

Nessa perspectiva mediadora, conforme o modelo brasileiro, em âmbito municipal, não só os cidadãos, mas também e principalmente com poderes instituídos, surge a figura do vereador, votado e escolhido pelos membros da sociedade local, portanto, dotado de legitimidade, torna-se encarregado e representante dos compromissos assumidos com sua comunidade.

A Câmara, fonte originária das leis municipais, deve ser a caixa de retorno das vozes populares, expressando com transparência o cumprimento dos compromissos firmados durante a campanha eleitoral. A vereança não deve só honrar suas propostas, como também, após o processo eleitoral manter aberto os canais de comunicação com os cidadãos; mais que isso, deve ampliar com práticas pró-ativas a capilarização desses caminhos e o debate permanente.

Ser vereador é ouvir mais pelas ruas que ser ouvido na tribuna da Câmara, muitas vezes em discursos enfadonhos ou elogiosos, cínicos e estratégicos; cabe ao representante municipal voltar-se sempre aos apelos da sua comunidade, não importando se essas vozes venham de lugares que porventura não se seja seu reduto eleitoral.

Uma vez eleito, o vereador embora mantenha vínculos com seu eleitorado privado, todavia, torna-se representante de toda a comunidade, desta forma, saúde, educação, moradia, trabalho, assistência social, segurança, ordenamento e ocupação dos espaços públicos e tantos outros temas, deixam de ser propostas para ganhar a rubrica de realização comum e, pelos próximos quatro anos que virão, não pode haver outras preocupações senão estas.

Após eleitos os vereadores passam a ter um compromisso de servir ao povo, com denodo, responsabilidade e transparência; contudo, e acima de tudo, com a disposição de sempre mediar as necessidades, expectativas e interesses da população, entre agentes públicos e/ou privados, além de garantir o espaço de permanente expressão popular na casa legislativa municipal.

Desta forma, a escolha dos representantes à Câmara Municipal ganha significância e significado e se afastam de propostas vazias, que não vão além de slogans que pouco ou nada expressam: “o amigo de sempre”, “o melhor”, “o novo”, “o moderno”, “a mudança”.

A modernidade trouxe um novo conceito de poder, cunhado sobre a plataforma do contrato social, afastando as predeterminações cósmicas e divinas, o que viabiliza o apossamento pelo cidadão dos rumos que pretenda dar ao seu destino, oportunidade inabdicável, penalizada com o abandonar da própria cidadania.

Votar num vereador compromissado com a modernidade possibilita avançar na construção da democracia real; ainda que audaciosa a proposta, se considerada em termos meramente locais, entretanto, os valores ora apresentados se aplicam de forma global e devem ser defendidos em todas as instâncias (município, estados e país); construir uma sociedade universal não é algo que se realize a partir de paradigmas internacionais, mas de microtransformações locais, que difundidas, se alastram e contaminam como vírus as demais esferas de poder.

Globalizar e universalizar a democracia são processos que demandam envolvimento e atividade participativa, não importando o nível de poder que se pretenda discutir; desta forma, a escolha de um vereador se torna tão ou mais importante que a escolha do prefeito, do governador ou do presidente, afinal, o que está em jogo não é o grau do poder, sob um ponto de vista hierárquico, mas sob a ótica da construção da democracia, a participação do cidadão na escolha do seu destino.